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Uma IN em boa hora: quotas preferenciais em sociedades limitadas. Por Uinie Caminha

Uinie Caminha é advogada. Sócia de BMC Advogados. Doutora em Direito Comercial pela USP, professora Titular da pós-graduação da Unifor e Adjunta da Universidade Federal do Ceará. Escreve mensalmente para o Focus.jor.

Uinie Caminho
Post convidado

A edição da Instrução Normativa 81 do DREI ( Departamento de Registro Empresarial e Integração) de 2020 tem por principal objetivo simplificar e racionalizar as normas relativas ao Registro de Empresas, consolidando diversos normativos e revogando outros tantos. Dentre outros assuntos, o ato reacendeu alguns debates sobre a possibilidade e pertinência da restrição de direitos políticos em sociedades limitadas, pela adoção das chamadas cotas preferenciais. Nesse normativo, não só o órgão responsável pelo estabelecimento de normas e diretrizes do Registro Público de Empresas reconheceu expressamente a possibilidade de existirem quotas preferencias, como a dessas terem direito de voto restrito ou suprimido, esclarecendo ainda como se organizam os quóruns das limitadas no caso de sua adoção.

Com efeito, estabelece a Instrução:

“5.3.1 Quotas preferenciais

São admitidas quotas de classes distintas, nas proporções e condições definidas no contrato social, que atribuam a seus titulares direitos econômicos e políticos diversos, podendo ser suprimido ou limitado o direito de voto pelo sócio titular da quota preferencial respectiva, observados os limites da Lei nº 6.404, de 1976, aplicada supletivamente.
Havendo quotas preferenciais sem direito a voto, para efeito de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil consideram-se apenas as quotas com direito a voto.”

O ato normativo veio esclarecer, em boa hora, a polêmica que permeia o meio societário há alguma tempo: é possível a restrição ou supressão do direito de voto nas sociedades limitadas? Como todo o respeito aos ilustres colegas que pensam de maneira diferente, parece certo que sim.

A rigor, o DREI veio apenas deixar clara uma posição que se consolida com a evolução da sociedade limitada e sua utilização do mercado, o que é tão comum e louvável no Direito Comercial. Do ponto de vista legislativo, nunca houve menção expressa na regulação das sociedades limitadas às quotas preferenciais, nem para admiti-las, nem para proibi-las, assim como não há a outros institutos típicos das sociedades anônimas, como conselho de administração ou acordos de sócios, comumente adotados pelas limitadas.

Isso se explica até pelo fato de que, tanto o Decreto 3708/1919 quanto no Código Civil de 2002, expressamente preveem a regência supletiva pela Lei das SA – naquele, por determinação legal, e neste, por escolha contratual. Não há, quer pela natureza do direito de voto, quer pelas características do vínculo societário nas limitadas, ou pela interpretação sistêmica de nosso ordenamento, uma limitação a que os sócios recorram a uma forma de organização societária que restrinja direitos não essenciais – como é o caso do voto, por meio de contrato.

A questão se põe em nosso ordenamento há algum tempo, no âmbito do próprio DREI, e vem evoluindo em seu entendimento. A propósito, a Instrução Normativa 98, de 2003, consolidava o entendimento do DNRC (órgão sucedido pelo DREI) de que não caberia “para a sociedade limitada a figura da quota preferencial”.  Ainda sob a vigência daquela instrução, esse entendimento veio a ser alterado por meio de processo administrativo, que admitiu as quotas preferenciais em sociedades limitadas desde que não houvesse restrição ao direito de voto.  É certo que essa interpretação imitou em grande parte a utilidade das quotas preferenciais, vez que a recepção de investidores com restrição de poderes políticos mas com vantagens econômicas é normalmente a função dos títulos preferencias.

Note que nas limitadas, ao contrário das sociedades anônimas, já e possível dar vantagens econômicas a determinados sócios pode meio da distribuição desproporcional de lucros, e, portanto, seria despicienda a criação de classe de quotas com esse intuito.

A IN 98/2003 foi substituída pela Instrução Normativa 38/2017, tendo, desta feita, o regulador optado por permitir a emissão de quotas preferenciais, quando determinou que as limitadas que adotassem estruturas típicas de sociedades anônimas presumir-se-iam regidas supletivamente pela Lei 6.404/76, para fins de registro na Junta Comercial.

Mesmo com a previsão expressa das quotas preferenciais em sociedades limitadas, ainda restou a dúvida com relação à restrição do direito de voto, apesar de, a rigor, essa dúvida não encontrar fundamento na legislação ou nas características próprias da sociedade limitada. O Código Civil admite, em seu art. 1055, a existência de quotas iguais ou desiguais distribuídas entre os sócios e, apesar de parte da doutrina entender que as diferenças dizem respeito apenas ao valor das quotas, não caberia interpretação restritiva à autonomia de contratar dos sócios, se não está expressa. Assim, entende-se que as distinções entre as quotas podem ser de outras naturezas, inclusive no que diz respeito aos direitos que conferem.

Andou bem a Instrução quando elucidou desde logo questão que certamente se poria: o cálculo dos quóruns no caso de existência de ações preferenciais. Os quóruns de deliberação da sociedade limitada já são, em si, um problema… a disciplina do Código Civil acabou por criar um sistema desarrazoadamente complexo, que, apesar de ter passado por correções pontuais, continua restringindo a liberdade de definição dos termos do contrato social dos sócios.

Esclarece a norma que em caso de haver quotas preferenciais sem direito a voto, na contagem dos quóruns, tanto de instalação quanto de deliberação, deve-se levar em conta apenas o capital votante, a exemplo do que já determina a Lei das Sociedades por Ações. Fato é que não faria nenhum sentido o entendimento de que a formação dos quóruns computaria as cotas preferencias sem direito a voto, vez que a razão de existir dos quóruns é exatamente procurar dar, às decisões societárias, a maior representatividade possível.

Caso, se entendesse que, por leitura da literalidade dos artigos 1074 ou 1076, por exemplo, não se poderia cogitar da desconsideração de quaisquer quotas para a determinação de quóruns, o que se conseguiria seria o exato oposto, ou seja, seria possível instalar uma assembleia em primeira convocação com menos representatividade real, já que seriam contados quotistas que sequer podem votar.

Da mesma maneira, não há como considerar sócios não votantes para a formação de quórum deliberativo, vez que não deliberam. Seria levar a lei a uma interpretação absurda. Assim como não faz sentido elevar artificialmente os quóruns considerando que só seria possível a existência de 25% de quotas preferenciais, vez que o mais alto quórum legal é de 75% do capital… seria criar um quórum de unanimidade, que se sabe ser excepcionalíssimo no direito societário.

Sabe-se que o Código Civil representou uma involução na regulação das sociedades limitadas, trazendo excessiva intromissão do direito positivo na estruturação dessas sociedades. Todavia, outros ares sopram… a edição da Lei da Liberdade Econômica trouxe à tona um corolário básico do Direito Privado, há tempos anuviado pelo emaranhado de regulações estatais: o que não é proibido, é permitido. A leitura de alguns dispositivos da lei, como o inciso VIII do artigo 3º (livre determinação dos negócios paritários e aplicação apenas supletiva da lei, respeitadas as normas de ordem pública); ou o Inciso VII do artigo 4º (considera abuso de poder regulatório criar limites à livre formação de sociedades) mostra que sequer seria necessário todo esse arrazoado para entender que as relações entre os sócios devem ser pautadas pela autonomia privada, salvo raras exceções.

A Lei da Liberdade Econômica também impõe à administração pública o dever de evitar criar entraves a novas tecnologias ou modelos de negócio.  Acertou o DREI quando reconheceu uma possibilidade que, na verdade, já existia. O uso de novas tecnologias societárias deve ser estimulado, e não impedido por entraves burocráticos ou regulatórios, especialmente em uma hora em que tanto precisamos de investimentos.

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