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Uma crônica de graça. Por Angela Barros Leal

Recebo uma mensagem no meu celular: Bom dia – cumprimenta-me uma jovem chamada Francisca Lucivândia. Adiciona meu número novo, ela solicita, explicando: Meu celular molhou e estou usando esse por enquanto. Depois eu vou na operadora ver se consigo recuperar o outro número.

Pela foto no perfil, Francisca Lucivândia tem uma testa alta, desimpedida de franja, cabelos castanhos descendo abaixo dos ombros, rosto oval, sem sorrisos. Usa imensos óculos escuros e possui um carro. Ou pelo menos sabe dirigir e fazer suas selfies no banco do motorista. Gosta da cor laranja, usa roupas sem mangas, para fugir do calor, e combina o conjunto com brincos discretos. Desconheço essa pessoa.

Lamento ter acontecido isso, respondo a ela, acrescentando que, do meu lado, as coisas também não vão muito bem. E solicito notícias do pai dela, por quem tenho orado muito nesses últimos dias.

O pai tá melhorando, ela informa, para perguntar, interessada: Como assim as coisas não estão bem, o que houve? Queixo-me de artrite, artrose, dedos doloridos, dificuldade de datilografar. Isso mesmo: datilografar, e não digitar. Um tanto preocupada, ela me pergunta se estou tomando os remédios, e logo em seguida avança para o ponto crucial, ignorando pontuação: Está muito ocupada agora eu precisava de um favor seu.

Diga, eu respondo, sempre solícita, imaginariamente tricotando, com dedos artríticos, roupinhas para animais de estimação.

Faz-se uma longa pausa nas mensagens. Francisca calcula o tamanho do favor que vai pedir, sem espantar essa senhora paciente e adoentada, talvez amiga do pai dela. 

Eu preciso fazer um pagamento aqui mais [sic] não tô conseguindo pelo meu aplicativo do banco. Trata-se realmente de uma dificuldade séria, a que Francisca enfrenta, causada pelo transtorno de ter tido o celular molhado. Consegue pagar uma conta pra mim, até segunda-feira de manhã já te devolvo o valor. Consegue fazer esse favor pra mim? Eu respondo, tão maternal: Minha filha, você já falou com o seu pai? E emendo: Fico encabulada de mandar dinheiro para você, porque já tenho aquela dívida com ele…

Francisca Lucivândia se detém novamente a pensar. Estamos envolvidas em uma variação de jogo de xadrez, um mind game doméstico com ataques e recuos estratégicos. Ela deve estar jogando com vários tabuleiros ao mesmo tempo, e presumo que queira partir para o ataque contra o oponente que oferecer menores dificuldades rumo à vitória.

Por isso mesmo não desiste e avança, sem perder tempo com pontuações: Eu precisava pagar uma conta hoje eu vou ao banco segunda já devolvo. E, sim, ela já falou com o pai dela, claro, e ele não dispõe do dinheiro. Resta, portanto, recorrer a mim.

Quanto você precisa, minha filha, respondo em um suspiro resignado. Se for muito não posso. E busco segurança: Segunda você me devolve? Claro! – ela assegura. Sem falta! O valor necessário é de R$ 2.980,00 que, obviamente, não disponho: Os remédios estão caros, até a ração do Bolinha – animal que nem sei se é cão ou gato – aumentou bastante. Culpo a carestia e aviso que vou ligar para o pai dela, explicando a situação, tentando ver se ele pode ajudá-la.

Obrigada, mãe, ela me diz, e eu de imediato questiono, qual sentisse a velha pulga a beliscar atrás da orelha: Mãe? Como assim? Ela se desculpa, veloz: Corretor errou. Corretores erram. Ainda mais com quem deve estar sustentando diálogos em paralelo, usando o santo nome da mãe. Consigo perceber que ela absorveu minha suspeita, porque parece haver aceitado a recusa. Fique com Deus, digito em despedida, tão maternal. 

Meia hora mais tarde ela retorna em texto: Conseguiu falar com o pai? Perdi o número dele no outro celular. Persistente, essa Francisca. E impiedosa, por querer extrair dinheiro de uma senhora idosa, ingênua, adoentada, possivelmente vivendo sozinha com seu inexistente Bolinha. É hora de revelar que sei muito bem que ela não é quem diz ser. VOCÊ NÃO É A FRAN, reclamo em maiúsculas, incorporando a personagem, ofendida por ter sido quase enganada. E bloqueio o número do telefone. A fotografia da suposta Francisca Lucivândia desaparece, quase de imediato, do perfil. 

Pelo menos a tentativa de golpe serviu para alguma coisa. Ela (ou com certeza ele, o golpista) fez a gentileza de me dar, de graça, o enredo para a presente crônica. 

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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