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Tributação no Brasil: entre as reformas desejáveis e as possíveis (Parte II). Por Juraci Mourão

Juraci Mourão é advogado, Procurador do Município de Fortaleza e professor universitário. Foto: Divulgação

Os tributos pagos no Brasil podem ser contextualizados diante dos oito elementos expostos no gráfico acima. Na primeira parte desta série de textos para Focus.jor (veja o link aqui https://bit.ly/2DdERQK),  explicamos que, partindo do ápice, temos em um sentido horário questões mais abstratas e fundamentais até chegar em questões práticas dos vários litígios travados entre Fisco e contribuintes nas diversas esferas administrativas e judiciais. Neste segundo texto, o objetivo é descrever esses elementos fundamentais dos três primeiros círculos, que moldam todo o panorama tributário.

No primeiro círculo, temos os princípios de moralidade política, que se apresentam como escolhas basilares que definem as caraterísticas do Estado brasileiro: uma república federativa, estruturada como um Estado Democrático de Direito social com uma economia de mercado. Seus objetivos são prescritos pelo art. 3º da Constituição Federal: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Diante de tais características, os tributos consistem na transferência de uma parcela da riqueza produzida pela sociedade com a função principal de gerar recursos para a máquina estatal exercer as atividades públicas necessárias para realização dos objetivos constitucionais. Também é possível com a própria incidência do tributo alcançar fins instrumentais àquelas do art. 3º, como, por exemplo, desestimular o consumo de determinados produtos (como álcool e tabaco).

Diante dessa mesma moralidade política, a cobrança se dá não pelo exercício da força bruta, mas dentro de uma relação jurídica, com limitações também estabelecidas pela Constituição Federal, como a obrigatoriedade de previsão em lei, respeito a igualdade, a capacidade contributiva de cada indivíduo ou empresa, vedação de confisco entre outros. Tais limitações sequer podem ser objeto de emenda constitucional.

Podem parecer escolhas óbvias, porque construídas historicamente pela sociedade ocidental. No entanto, ao serem contrastadas com escolhas atuais de outros países, percebem-se quais valores prestigia. Por exemplo, em contraposição, na Arábia Saudita não há pagamento de tributo, pois sua economia é baseada em um único produto (petróleo), tido como propriedade privada da família real que rege o Estado em nome de Alá.

Quando se fala de reforma tributária no Brasil, não se está, então, falando de uma reforma nestes primeiros aspectos fundamentais: dos princípios de moralidade política do Brasil, das limitações constitucionais do poder de tributar nem alterar os objetivos dos tributos. A reforma pressupõe justamente melhorar os demais elementos de nosso sistema tributário para realizar melhor esses mesmos aspectos fundamentais.

Tem-se, assim, traçados juridicamente os limites em que pode ocorrer a reforma. Nossa ordem constitucional traça os princípios que traduzem juridicamente o que se deve entender por justiça tributária. Neste texto, destacaremos dois: equidade e eficiência.

A equidade pode ser traduzida de uma maneira mais simples na necessidade de uma maior atenção às particularidades de cada situação quando da aplicação ou criação de direito, deveres e obrigações. Em termos tributários, é possível se falar que a equidade é viabilizada pela capacidade contributiva (devem ser tributadas realidades que denotam riqueza), aperfeiçoada pela progressividade e pessoalidade dos impostos.

A progressividade, por sua vez, consiste em aumentar a carga tributária na medida em que aumenta a capacidade econômica de quem paga. Exemplo de aplicação desse princípio é o Imposto de Renda, que tem alíquotas maiores para faixas de renda maiores. Com isso, paga mais, quem tem mais. O contrário é a regressividade: paga mais quem tem menos.

Surpreendentemente, embora a Constituição Federal prescreva a progressividade, a realidade no Brasil é que temos uma carga tributária altamente regressiva, sobretudo porque há a escolha de se tributar mais o consumo do que a renda ou o patrimônio.

Em países desenvolvidos, a tributação se concentra sobre o patrimônio e a renda, pois permitem maior justiça na cobrança, pela progressividade e pela pessoalidade. A alíquota do imposto de renda nos EUA varia de 10% a 37% (no Brasil é de 7,5% a 27,5%), sendo também alta lá a tributação sobre a herança, vai de 25% a 40% (no Brasil é 8%). Por outro lado, há menor tributação do consumo, daí por que a bem conhecida diferença entre os preços dos produtos aqui e lá (o exemplo do preço do iPhone já é um clássico).

Não é apenas que os americanos pagam menos tributos (em torno de 26% de seu PIB, diante dos 35% do nosso), mas eles pagam sobre uma base que não permite (ou ao menos dificulta) que a carga tributária seja repassada para os consumidores nos preços de bens e serviço. O governo americano, na década de 1980, operou uma grande redução da tributação sobre o consumo, querendo que fossem mais baratos, mas a fatia da renda ou da herança que cada um recebe é menor, pois a carga tributária sobre eles incidente é consideravelmente maior. Mesmo países desenvolvidos com carga tributária maior que a brasileira não têm grande tributação sobre o consumo justamente por causa do caráter regressivo.

O mal da regressividade pode ser exemplificada que a carga tributária embutida no preço de um quilo de carne é o mesmo, independentemente de quem o compre. Ao ser contrastada com a renda do comprador, é possível verificar que os tributos embutidos representam uma parcela muito maior da renda do pobre. De fato, a carga tributária dos mais pobres chega a quase 50% de sua renda, quando dos mais abastados é menor que 30%. Em nenhuma das propostas consideradas mais seriamente atualmente, tem-se o combate da regressividade, visa-se a simplificação buscando efetividade.

Na proposta do governo, tem-se quando muito uma busca de uma simplificação em torno de duas contribuições. Na PEC 110/2019 (iniciada no Senado) e na PEC 45/2019 (na Câmara) também se tem basicamente a unificação de tributos, criando-se o IBS e um Imposto seletivo, mas ambos continuam a incidir sobre o consumo. Na proposta do Senado, substituem-se nove tributos (IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS). O mesmo IBS na proposta da Câmara substitui cinco outros tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS). Por sua vez, o imposto seletivo de ambos também colhe o consumo para desestimular alguns produtos nocivos, como álcool e tabaco.

Há uma proposta de Emenda Substitutiva Global 178/2019 (veja aqui https://bit.ly/2XtLiFZ) apresentada por partidos de oposição, fundamentado em estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip), Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) e Plataforma Política Social (clique no hiperlink). Nela, há uma migração de nossa matriz tributária do consumo para o patrimônio e renda, além de uma tributação ambiental e do comércio exterior. No entanto, dificilmente essa proposta prosperará.

Não se trata simplesmente de querer eternizar a contraposição entre ricos e pobres, mas de uma questão de princípios, cuja efetivação pode ter efeitos econômicos positivos, pois pode incrementar o consumo, aquecendo a economia, sem necessariamente importar perda considerável de arrecadação, a qual, destaque-se, não se quer reduzir. De fato, é preciso deixar claro mais uma vez: as reformas em discussão não se propõem a reduzir tributos, quando muito simplificá-los.

A proposta da oposição, no entanto, não é a única alternativa existente. Há os flat taxes verificados na Europa oriental em países saídos do socialismo, que buscando passar bom recado para o mercado simplificaram a tributação da renda – em prejuízo da progressividade -, mas por alíquota menores e mais simples. Por ser um pagamento pequeno e mais fácil, que podem ser fiscalizados mais eficientemente pelo Fisco, houve em casos como a Rússia, aumento da arrecadação, sem importar maior sacrifício para os contribuintes. Portanto, é possível sopesar uma menor progressividade (e consequentemente a equidade) com o outro princípio constitucional, o da eficiência, por vários meios.

No entanto, não se fala mais seriamente em uma redução drástica da complexidade tributária brasileira, de modo a justificar a manutenção da relativização da progressividade. A reunião de vários tributos no IBS traz o desafio de coordenar a atuação da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, que serão destinatários desse recurso, de modo a definir o papel deles no controle, cobrança e alteração.

Portanto, é necessário querer mais, exigir mais e propor mais do que o que está posto em termos de reforma tributária. A simplificação é pequena, sem implicar aumento considerável de eficiência, e a manutenção da regressividade é certa, somada as muitas dúvidas a respeito de como ficará a relação entre os entes federativos e estes com os contribuintes. Mas esse aspecto será objeto do próximo texto.

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