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Televisão para o povo, como o povo gosta. Paulo Elpídio

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

Sim, caro Wheeler, você providencia os textos.  Eu providencio a guerra”. Kane para o redator-chefe do jornal, em “Cidadão Kane”, de Orson Welles

O advento da televisão e a sua expansão crescente como meio de comunicação social ocorre pelos anos 30 de século passado.

Surge, em um pequeno intervalo de tempo, nos Estados Unidos e na Europa. Na Europa, caracterizou-se como iniciativa do Estado. Na América, como empreendimento privado-público.

Às vésperas da Segunda Guerra, passou rapidamente ao controle do Estado e da propaganda política, lá e cá. Desfraldou bandeiras ao sopro do nazi-fascismo, do comunismo e da sociedade do bem estar.

O fascismo, o nazismo e o comunismo, marca do totalitarismo que levaria à guerra, apoiaram-se na imprensa, no rádio-broadcasting e na TV nascente, e dela fizeram a mais aguerrida máquina de propaganda até então conhecida.

No pós-guerra, acentuou-se o perfil da TV sob o controle do Estado, na Europa, e, nos Estados Unidos, como iniciativa privada, sustentada pelos anunciantes e as verbas públicas.

O Brasil entra na era da TV, após a guerra, pelos anos 50. Fora as facilidades asseguradas pelo governo para a importação de equipamentos, o empreendimento foi predominantemente privado. A televisão não convencera os políticos e homens públicos, tampouco os empresários do seu poder sobre as consciências e convicções, O tempo demonstraria, entretanto, o erro de avaliação em que muitos incorreram.

Os Diários e Rádios Associados, Chateaubriand à frente de uma aguerrida rede de comunicação, estenderam o alcance de repetidoras pelo país inteiro, como acontecera com a rádio Tupi e a rádio Nacional, esta de índole estatal.

A TV chega ao Ceará pelos idos de 60, com o Canal 2, precursor de uma nova era que iria impor-se nos domínios da comunicação de massa.

Canal único, sem concorrência, a televisão cearense viveu um longo período de artesanato, com ricos improvisos em substituição aos insumos técnicos, tecnológicos e intelectuais que lhe faltavam. Alguns técnicos trazidos do Sul, de passagem, treinavam alguns autóctones, remanescentes da era do rádio para a engenharia dessa nova linguagem. Faziam o que podiam, inventavam, criavam, improvisavam, com a velocidade do que deveria ter  sido feito para “ontem”.

No Brasil, salvo alguns poucos canais educativos, prenúncio da educação a distância, e outros de vocação cultural mais acentuada, a televisão não foi muito mais do que o rádio, vozes ocultas transmitidas em imagens. Aquelas impostações graves e carregadas, já então, podiam ser “vistas”, tinham o condão de coisas reais, existentes.

Ainda hoje, a televisão oscila entre o jeitão das velhas emissoras de radio, com seus programas de auditório, sob a influência dos anunciantes, dentre os quais  o governo, o mais generoso de todos os anunciantes no provimento de patrocínio para jornais de televisão e para a  fixação da identidade político-ideológica dos canais. Por esse tempo, a rádio encontrava sua contrafação nas irradiadoras de bairros, caricaturizadas em programas de calçada, em praças públicas, puro entretenimento para tardes desocupadas em pequenos vilarejos do interior.

No Ceará, episódios risíveis entrariam para a crônica do trabalho dos que migraram da imprensa e do rádio para a televisão. Alguns deles não serão por certo esquecidos. Locutores e atores, escondidos pela voz, apareceram, de repente, com rosto, falas e personalidade próprios, reais. Predominaram sobre a palavra o charme, a postura e a sedução da imagem em preto e branco.

O primeiro slogan, cunhado por aqui mesmo, refletia com rara felicidade a síntese da definição de um projeto ambicioso: “Televisão para o povo, como o povo gosta”.

Ficou suspenso no ar o entendimento do que poderia ser uma televisão que o povo não gostasse…

Até hoje, setenta anos decorridos da chegada da televisão em berço esplêndido, pouco mudou nesse poderoso teatro de realidades produzidas. Continuamos a apresentar uma televisão para o povo, como o povo quer. Mas com verbas públicas abundantes, aqui e em outros rincões do país. Ou com a cumplicidade do setor privado do qual provêm meios e estratégias bem resolvidas. Antes, os jornais, agora a televisão encarnava a representação maior e mais legítima das liberdades democráticas.

Alguns poucos canais, ligados a fundações associadas a centrais de emissão privadas, mantêm programação de razoável conteúdo cultural e educativo. São canais fechados, por assinatura, sustentados pelos anunciantes e pelas contribuições patrióticas dos governos de todas as instâncias administrativas e de todas as greis partidárias…

O princípio “democrático” de uma “televisão do povo, para o povo, como o povo gosta” é falso e, genericamente, ambíguo, para não apontar como criminoso. Nossos padrões culturais e o nível educacional do povo clamam por instrumentos e estratégias de aprendizado e cultura. O entretenimento nas telinhas é uma espécie de ópio do povo, diria Lênin em um dos seus momentos criativos.

Em um certo sentido, em um país de analfabetos, sobretudo de analfabetos funcionais, como o Brasil — o país dos nordestinados não escaparia a essa dolorida generalização — a escola assume formas variadas de atuação, na família, no trabalho, nos meios de comunicação, na empresa, na Igreja de todos os cultos, na escola e na universidade.

Não é compreensível, muito menos aceitável que, aos sábados e domingos, a programação da TV aberta ou fechada, não consiga fugir ao padrão global dos programas pífios de auditório, com apresentadores medíocres, mal informados, tropeçando nesta pobre língua, esse belo e frágil idioma que mutilamos intencionalmente ao falar. Afinal, a nova sociedade anunciada deve começar pela desconstrução dos mecanismos de dominação da elite, cuja gazua começa a trabalhar pela decomposição cultural das jovens cabeças, não é assim? Que não se organize uma seleção de bons filmes, documentários históricos e entrevistas com quem valha a pena ouvir o que tenha a dizer, entende-se. É tempo, afinal,  de deitar por terra esse impiedoso processo de colonização, como advertia Gramsci nessa busca heroica pelo “homem novo”…

A imagem parece, entretanto, não ter-se sobreposto às falas, na televisão brasileira.

Não podemos mais nos submeter a padrões linguísticos estabelecidos fora da escola, na frouxa elaboração dos textos baseados nos vícios de linguagem correntes. Não se pede a adoção impositiva de modelos de um língua erudita, segundo recursos cultivados.  Dificilmente se alcançaria, por aqui, proeza cívica e linguística de tal magnitude, sem que fosse denunciada ao mundo a perversa intenção de impor aos povos um genocídio cultural   de tamanhas proporções.

Falando a sério, o povo tem que ser bem municiado com ideias e práticas que possam abrir-lhe o entendimento para receber, acumular e questionar o que pensam a elite e o ativismo militante, sem que tenha de submeter-se à vulgata ideológica que aprisiona a consciência e a liberdade dos cidadãos. A palavra é a moeda da liberdade. Manter o povo emparedado dentro dos espaços vazios de inteligência é como fosse aprisionado sob custódia nos limites da própria ignorância. Não bastaria, para produzir-se esse confinamento, a capacidade de reprodução  social e cultural da família e da escola – a televisão e as redes sociais poderão ser convocadas para a multiplicação das ideias e das convicções e certezas estocadas pela criatividade das centrais ideológicas.

Nos portais da informação jornalística, a televisão brasileira chegou a um nível de manipulação que haveria de fazer inveja a Goebbles e Trotski.  Alguns canais públicos, sob o controle de tribunais, do senado, da câmara federal, das assembleias legislativas, das câmeras de vereadores e de outras instâncias, constituem hoje, no Brasil, uma barreira incontrolável, pela qual se pratica o monopólio da notícia, da informação e da opinião. Milhões de reais são despejados nessa pujante rede de interesses, um mercado de grandes proporções que emprega profissionais de todos os calibres, inclusive os postos em disponibilidade em um mercado em progressiva retração.

As técnicas de ensino a distância rastejam, com a falta de equipamento e de treinamento de professores para a tarefa inovadora.

A pandemia, é forçoso admitir, fez mais pela educação do que o ministério da educação, as universidades e o sistema escolar de todo o país. A necessidade obrigou professores e alunos a construírem uma ponte de comunicação (seria uma ponte do Rio Kwai?) para a circulação do conhecimento.

A iniciativa privada improvisou, avançou e conseguiu manter a população estudantil em salas de aula não presenciais. A iniciativa pública espera, reclama meios, oportunidades e verbas, as mesmas que se perdem pelo ralo dos dispêndios improdutivos dos governos. Os políticos porfiam, empacados na própria ignorância, de braços com as suas conveniências, em lutas paroquiais, agora agravadas pelas tendências ideológicas que eles não compreendem, mas nelas enxergam, premonitoriamente, algumas vantagens  de ocasião.

A televisão brasileira, de Chateaubriand aos numerosos Marinhos, disseminados, por proverbial concessão pública, pelo país inteiro, não avançou muito. Tem bons atores, não se pode negar, bons redatores e alguns comentaristas-analistas-oráculos, amplo espectro, capazes de qualquer proeza lógica para criar a realidade, como convém, aliás, a empresas com tão arriscados compromissos.

 

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