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Sem perder a ternura jamais, por Augustino Lima Chaves

Augustino Lima Chaves resenha a obra que mostra a trajetória de um general que, corajosamente, foi contra a corrente nazista. “Mais do que um General” . Chaves é Juiz Federal e assessor da presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foto: Divulgação.

O livro coloca você frente ao alemão Hammerstein. De suas fotos, ao longo da linha da vida, emanam bem estar. Seu semblante denota empatia.

O cargo dele era nada mais nada menos do que o de Comandante Chefe do Exército. General. General prussiano, casado com filha de general prussiano.

Um movimento político começava a ser engendrado, seu nome era nazismo. O General Comandante posicionou‐se contrário a esse movimento, posicionou‐se contrário às massas, que adoraram o psicopata de Munique, naquela Alemanha avassalada. Seus pares foram, em sua maioria, em passos hesitantes, seguindo o delírio do novo líder, nomeado Chanceler, que nos começos lisonjeava o conciso grupo de generais da cúpula.

A sucessão das páginas vai nos inserindo naqueles dias, através da vida dele, General Hammerstein.

“O medo não é uma visão de mundo”, ele costumaria repetir. Sua bússola apontava a outros nortes e essa síntese seria legitimamente a inscrição em sua lápide, recado do reino dos mortos a nós outros.

Requereu aposentadoria. Retirou‐se, mas permaneceu na Alemanha, ausente do centro de gravidade, ausente de Berlim. Milagre não ter sido assassinado. Morreu em 1943, aos 64 anos de sua vida, o corpo cansou.

Seus contemporâneos nele reconheceram a estrela fulgurante do gênio. Sua análise militar clarividente, validada pelos eventos futuros, moldava‐se no quadro da Política. Antecipou também que Hitler seria vencido pela Rússia. Sua opinião ganhou a natureza de veredito.

Assuntos secundários lhe provocavam alergia: a mente deve estar livre e limpa para o essencial.

Discordou de Hitler, mas nem ele nem ninguém imaginaria o holocausto. Quando depois percebeu a dimensão, Hammerstein tentou, ele mesmo, eliminar Hitler, que, entretanto, seguindo seu faro, faltou ao encontro. Mais na frente seu filho participou de outra tentativa de eliminar Hitler: o sangue do pai corria‐lhe nas veias.

O escopo declarado do autor do livro ‐ e o autor do livro, Hans Magnus Enzensberger, nascido em 1929, de extraordinárias obras, busca precedentes emblemáticos e desconsiderados ‐ nos sugere que a vida poderia sim ter sido diferente.

O livro demonstra que existiu espaço e tempo para não ter deixado o psicopata chegar onde chegou.

Sempre há de existir outro caminho, outra solução, mesmo na aflição das ruínas. Não estamos, coletivamente, enquanto projeto social, condenados entre o “isso” e o “aquilo”, sobretudo quando ambos nos são lesivos.

A humanidade surpreende face aos momentos extremos, essa é a mensagem de ouro do centenário Edgar Morin, ele mesmo integrante dos quadros da resistência francesa.

Faltaram ‐ faltam ‐ mais espíritos como ele, Hammerstein. Nenhum filho ou filha dele curvou‐se ao nazismo. Toda sua família assumiu clara e irrevogável posição contrária a Hitler, raridade, sabendo‐se quão carregada e persecutória era a atmosfera naquelas terras. Foram militantes da resistência.

Em contraponto à cúpula nazista que roubou o patrimônio dos lares judeus, ladrões assassinos, Hammerstein era desligado de ter patrimônio, desafetado, talvez classificasse essa obsessão por patrimônio na esfera do secundário perante sua compreensão da vida: nunca teve sequer uma única casa de sua propriedade. Sua propriedade era sua vida, o tempo que nos é concedido.

O livro descortina e documenta fatos históricos curiosos: a antiga parceria militar Alemanha‐ Rússia, a reciprocidade nos interesses, bem anterior ao “inesperado” pacto Hitler‐Stalin. Outro: o absoluto desprezo dos líderes soviéticos à imolação dos militantes comunistas de outros países, que cegaram pelo movimento de 1917, que idolatravam histericamente quem lhes desprezava.

Mas o que entra espírito adentro é seu desassombro: “o medo não é uma visão de mundo”. A frase, naqueles dias, contém heroísmo.

Mas é mais do que coragem: é a encarnação de um sistema de compreensão da vida, de tranquilamente assumir valores, de nos sabermos transitórios, do mistério que nos circunda, modus vivendi que lhe devolveu o doce fruto do bem estar. Um dom de artista. Os espíritos elevados vivem, cada um a seu modo, impregnadas de arte.

Não consigo deixar de registrar a presença do bom humor, a certidão desse cotidiano: “enquanto durar esse período não posso mais nem contar piada de judeu”, brincava.

A versão brasileira optou, na tradução do título do livro, por traduzir “eigensinn” por “obstinação”, lapso dessa primorosa tradução ou, mais provável, determinação editorial.

Ao ler o título, desenhei para mim um personagem obstinado, estado de espírito, ainda que em sua mais saudável variante, não adequado ao singular biografado.

A palavra alemã original – eigensinn – em nada remete à nossa palavra “obstinação”. O obstinado tem um projeto e o projeto o tem. Não era o caso do General, alma abençoada nas luzes da tranquilidade. Não vivia no futuro, adiando‐se. Vivia o presente. Era declaradamente amante das férias e dos feriados, quando adentrava caminhos verdes bosques adentro, florestas adentro, respirando, olhando, andando, caçando. A palavra alemã remete à preservação de si mesmo, “o próprio sentido”. No caso, nos remete a quem conseguiu manter‐se ele mesmo, a despeito do peso do severo aparelho de coação externa.

Para concluir, dois registros. O primeiro: o livro merece ser levado ao cinema, seria dádiva, estupenda película. O segundo: o Judiciário não aparece nesses relatos e nem em outros desses tempos: não teve significado.

“Eu sou o que sou”. Hammerstein, meu caro, vossa pessoa é atemporal.

Ficha Técnica
Título original: Hammerstein oder Der Eigensinn
Tradução: Titan Jr., Samuel
Páginas: 344
Formato: 14.00 X 21.00 cm
Peso: 0.426 kg
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 05/06/2009
ISBN: 9788535914771
Selo: Companhia das Letras

Apresentação do livro (retirada do site da editora Companhia das Letras)
Quando chegou ao poder supremo, nos primeiros meses de 1933, Hitler apresentava-se como a encarnação da vontade unânime dos alemães. Vencedor nas urnas, bem relacionado no mundo da indústria e das finanças, o líder nazista rapidamente tratou de caçar seus adversários de esquerda e de conquistar os círculos influentes que ainda resistiam ou hesitavam, em especial na cúpula das Forças Armadas.

Sabendo manipular como ninguém o oportunismo e a convicção alheia, o ditador não demorou a ter êxito também nessa campanha. Com seu ambicioso programa de rearmamento e seus planos de expansão territorial no Leste, Hitler logo pôde contar com a colaboração de inúmeros generais oriundos da velha nobreza militar prussiana na formação da colossal máquina de guerra que foi a Wehrmacht nazista.

Se tudo isso é bem sabido, menos conhecida é a história dos que lhe disseram não. Foi o caso do barão Kurt von Hammerstein-Equord. General de infantaria e comandante do Exército alemão de 1930 a 1934, ele resistiu a todas as abordagens de Hitler e se manteve fiel a si mesmo, a suas convicções, mas, sobretudo, a uma visão cosmopolita do futuro da Alemanha. Essa obstinação, que acabou lhe custando o posto, agora lhe vale a atenção de um dos maiores nomes das letras alemãs, o poeta e prosador Hans Magnus Enzensberger.

Neste relato de gênero indefinível, Enzensberger dedica-se com cuidados de historiador e liberdades de poeta a traçar um perfil de Hammerstein e de sua família sui generis, bem como de grandes nomes da política alemã. Pois esse general prussiano tampouco lembra o pai de família convencional: suas filhas e seus filhos vivem intensamente os últimos anos da República de Weimar, interessam-se por todo tipo de orientação heterodoxa e, quando a situação se radicaliza, engajam-se a fundo no movimento comunista, na Resistência alemã ou mesmo na espionagem soviética. Tudo sob o olhar discreto mas atento de um pai singular, para quem “o medo não é uma visão de mundo”.

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