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Santo Remédio. Por Angela Barros Leal

Father and children playing on the beach at the day sunset. Concept of friendly family.

Um colega de velhos tempos, também aposentado, a quem reencontro após a passagem de uns tantos invernos e verões, me pergunta o que faço hoje para me ocupar. Nos encontramos por acaso, sem hora marcada, nossos caminhos se cruzando pelo simples desígnio das coordenadas cartesianas, pelo sopro do vento de terra, do vento de mar, ele vindo dos lados do Mucuripe para a Praia de Iracema, eu na direção oposta. 

Nos encontramos nos derradeiros momentos desse brevíssimo pôr-do-sol tropical, de nuvens afogueadas em vermelho, laranja e roxo. De longe já percebemos que o tempo nos maltratou, não há como esconder. Trocamos cumprimentos: tudo bem, pois é, como vai a família, as saudações de praxe. Mentimos ambos, descaradamente: você não mudou nada, nem você, cumprimos com as demandas do contrato social e sentamos para retomar o fôlego, aliviados em dar por finda a caminhada obrigatória. 

O que você faz para passar as semanas, uma hora depois da outra, um dia depois do outro, ele pergunta; como você faz para perceber as diferenças entre uma quinta e uma segunda-feira; o que eu faço para combater o que ele, angustiado e agudo como sempre, convencionou denominar o “daltonismo dos nossos dias”. 

Entendo perfeitamente o que ele diz. Se o calendário, em nossas existências passadas, se pautava pelas obrigações de trabalho, pelos horários a cumprir, por sérios compromissos, responsáveis pelo girar da Terra, por um torvelinho de afazeres que faziam do fim de semana um alvo ambicioso a ser atingido, o que vemos hoje, no calendário, é uma planície. Uma pista dupla, sem cruzamentos nem sinais vermelhos. Uma extensão árida, de terra firme na qual nada acontece – exceto a aproximação irreversível do destino final.

Antes mesmo que eu componha minha resposta, as palavras ainda a caminho entre o cérebro e a boca, ele confessa sua principal ocupação: consultas médicas; visitas a laboratórios; exames médicos; novas consultas médicas. Algo está sempre a incomodar, ele se lamuria. As pernas pesam, o coração lateja, a respiração encurta. Meu corpo inteiro se volta contra si mesmo, protesta. 

Estou sendo traído pelos meus nervos, meus órgãos, minhas entranhas, ele reclama. A visão me falha. Os movimentos me custam. A pele floresce em manchas de proveniência ignorada. A memória – meu Deus, a memória! – é nuvem passageira diante do sol, é voo de beija-flor, é um risco na água.

Nosso muro das lamentações, atrás do banco tosco em que sentamos, é uma simples palha seca de coqueiro, ainda pendendo do pé. Você exagera, eu recrimino, quase incomodada com a quantidade de queixas por parte dele. Você não me parece tão mal assim, avalio com olho crítico, curvando o pescoço de um lado a outro, buscando manifestações externas daquele rol de mazelas, tentando perceber marcas e sinais de tantos sofrimentos.

Ele está utilizando uma bengala, isso é um fato indicativo, que faz girar entre um par de tênis gastos, mas mantém os cabelos ainda escuros, como na juventude. Os cabelos brancos crescem para dentro, ele se defende, quando registro a observação capilar. 

A bengala é uma obra de arte. Madeira maciça, mogno com ponteira de ferro, o cabo representando a cabeça elegante de um galgo, desenhada em bronze. Ele destorce o galgo e me mostra um pequeno reservatório vazio, raso, no interior da bengala. Pelas informações confiáveis do leiloeiro a quem comprou a peça antiga, o espaço seria para guardar perfumes, pomadas, ou – e baixa a voz, tão conspirador quanto um personagem de romances do século XIX – ou veneno.

A lua cheia tenta ascender e se livrar da compressão em que se encontra, apertada entre dois edifícios de enorme altura. O sinal do farol, indicando aos navegantes o porto de Fortaleza, pisca intermitente. O cheiro de manteiga transborda do carrinho de pipoca e se mistura com a fragrância da maresia. Aproximam-se de nós duas crianças com a mãe: são a filha e os netos dele, que correm para abraçar o avô. Moram fora, ele apresenta. Estão na cidade em visita breve.

O menino maior puxa meu amigo pela mão e descem todos para a areia branca, iluminada. Ele me faz guardiã da bengala, subitamente desnecessária, que devo deixar na portaria do prédio onde ele reside, no meu caminho de volta para casa, aquela bengala com recipiente oculto para unguentos afrodisíacos ou preparados mortais. 

Quando me ergo avisto, imerso em uma poça de luz, o cidadão até há pouco semimorto correndo atrás da bola e dos netos, braços e pernas ativos, esquecido do catálogo de doenças que despejara em meus ouvidos. As crianças vão nos salvar de nós, penso comigo mesma. Esse sim é o que se pode chamar de um santo remédio!

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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