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Ruth Bader Ginsburg, mulheres e democracia. Por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial internacional. Mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. Escreve no Focus.jor semanalmente. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com

Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

Há quase uma década, Ruth Bader Ginsburg recebeu um diploma honorário de Harvard, juntando-se a uma lista repleta de outros luminares que foram homenageados naquela noite. Quando cada homenageado subiu ao palco, a multidão respondeu com calorosa apreciação e até mesmo alguns gritos de torcida. Entre eles, Plácido Domingo, o famoso cantor de ópera; Ellen Johnson Sirleaf, presidente da Libéria e a primeira mulher a liderar um país africano; Timothy Berners-Lee, o inventor da World Wide Web; Dudley Herschbach, vencedor do Prêmio Nobel de Química. Mas quando o nome de Ruth Bader Ginsburg foi chamado, todo o teatro explodiu em uma ovação massiva e estrondosa.

“Uma campeã da igualdade de raça e gênero”, “advogada pioneira em igualdade feminina”, “uma heroína dos direitos civis”, “um símbolo feminista”. Essas são apenas algumas das qualidades atribuídas à Ruth Bader Ginsburg, ou simplesmente RBG. Muito poucos indivíduos na história chegaram perto do papel extraordinário e significativo desempenhado pela juíza Ginsburg. Ela defendeu casos marcantes sobre igualdade de gênero perante a Suprema Corte dos Estados Unidos – e brilhantemente foi bem-sucedida ao debater o sistema de papéis de gênero legalmente impostos que limitavam as oportunidades para mulheres. Com visão e brilho, ela ganhou um lugar nos livros de história e no quadro de honra dos heróis dos direitos civis.

A juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja luta ao longo da vida por direitos iguais ajudou a pavimentar o caminho para que as mulheres assumissem cargos de destaque nos negócios, na vida militar e, claro, na política, morreu no último 18 de setembro. Ela tinha 87 anos.  Com o seu falecimento, republicanos e democratas iniciaram uma batalha para definir quem terá o poder de escolher sua sucessora na Suprema Corte. A senadora – e amiga pessoal de RBG – Elizabeth Warren disse que o “desejo mais fervoroso” de Ginsburg era que seu sucessor não fosse nomeado até depois da posse presidencial em janeiro. “Devemos honrar seu desejo”, escreveu Warren. A congressista Ayanna Pressley também rogou que o pedido de Ginsburg para atrasar a nomeação de seu sucessor seja homenageado.

Seu falecimento, no entanto, ultrapassa a importante conversa sobre a sua sucessão na Suprema Corte. Mas, de forma mais ampla, e ironicamente às vésperas de uma nova eleição presidencial nos Estados Unidos, seu legado nos implora que entendamos mais sobre o papel da mulher na democracia e no poder. Ela mostrou como o direito pode, com persistência e visão, ser uma ferramenta para dobrar o arco do universo moral em direção à democracia.

Ruth Bader Ginsburg entrou na Faculdade de Direito de Harvard em 1956, apenas seis anos depois que a escola começou a aceitar mulheres e como apenas uma das poucas matriculadas em uma classe de 500 homens – tudo isso ao mesmo tempo em que estava criando sua filha de 14 meses, Jane.

Alguns anos depois, a mulher que um dia teria assento na Suprema Corte dos EUA foi rejeitada por dezenas de escritórios de advocacia da cidade de Nova York por causa de seu gênero. “Já era difícil conseguir um emprego se você fosse mulher, mas se você fosse mãe, seria impossível”, disse ela.

Mas, nas décadas que se seguiram, Ginsburg construiu uma carreira notável como ícone jurídico e cultural que usou sua inteligência e coragem para lutar sem medo pela justiça social. Ela articulou uma batalha sobre discriminação contra mulheres e minorias de uma forma que ninguém mais fez. Suas opiniões falavam sobre sexismo sistêmico e racismo sistêmico e como a lei e os casos devem levar em conta atitudes embutidas contra as mulheres e atitudes embutidas contra minorias.

A visão de igualdade de gênero de Ginsburg estava décadas à frente de seu tempo. Foi além de apenas capacitar as mulheres para competir pelos papéis de “homens”.

Uma das maiores barreiras à representação igualitária de gênero na política é a falta de modelos femininos. Ver mulheres no cargo faz com que outras mulheres aspirem a carreira política e as fazem acreditar que podem governar. No entanto, ainda há incrivelmente poucas mulheres nos níveis mais altos do governo. Em todo o mundo, argumenta-se que a ausência das mulheres em cargos eleitos corrói a democracia. Eles desafiam: Pode a democracia sem mulheres ser chamada de democracia?

Em 2017, uma icônica imagem da administração Trump capturou perfeitamente a política de exclusão que irritou tantas mulheres. Nela, um grupo composto apenas de homens discutia a revogação da Patient Protection and Affordable Care Act – a qual incluía benefícios para gravidez e maternidade. Esse sentimento de exclusão levou um número recorde de mulheres (incluindo um número sem precedentes de mulheres negras) a concorrer às eleições para Câmara e Senado em 2018.

Para 61% dos americanos, esse aumento no número de candidatas foi visto como uma “coisa boa”. Quando se trata dos efeitos positivos de ter mulheres no cargo, ambos os extremos do espectro político podem fornecer uma justificativa para o porquê disso. Para os conservadores, decorre da maior moralidade das mulheres; para os progressistas, é porque as mulheres provaram seu valor e são mais propensas a adotar valores liberais. De qualquer forma, a afirmação de que “sem mulheres não há democracia” ressoa nas divisões partidárias e ideológicas.

O público dos EUA parece entusiasmado em ter mulheres em cargos eleitos, mas essa preferência é um sentimento cada vez mais global de que a representação política das mulheres é a chave para o funcionamento adequado da democracia. Em todo o mundo, mais mulheres em cargos políticos estão associadas a uma maior confiança no governo.

Os estudiosos têm tradicionalmente descrito a democracia como algo que se desdobra em três ondas globais distintas. A chamada primeira onda de democracia – de meados do século XIX até os anos imediatamente após a Primeira Guerra Mundial – ocorreu quando os países acabaram com as restrições ao voto que afetavam os homens de classe baixa. Os países removeram as restrições de propriedade e alfabetização sobre o voto, mas essas mudanças só beneficiaram os homens, e às vezes apenas os homens do grupo racial, étnico ou religioso majoritário do país. Após a Segunda Guerra Mundial, uma segunda onda de democracia se seguiu, que incluiu a descolonização na África e na Ásia, bem como a expansão do sufrágio feminino. Quando a União Soviética caiu em 1989, ela alimentou uma terceira onda de democratização, que envolveu não apenas a Europa Oriental, mas também a América Latina, à medida que a região abandonou seus ditadores militares e encerrou suas guerras civis.

Como bem observa a cientista política Pamela Paxton, é indiscutível que marcar o progresso democrático desta forma tem pouca conexão com os direitos das mulheres. Países como os Estados Unidos e a França foram celebrados por se tornarem democracias antes mesmo da primeira onda, mas eles não concederam direitos às mulheres até 1920 e 1944, respectivamente.

Historicamente, o único caminho para as mulheres obterem cargos eletivos era serem nomeadas por um homem, especialmente para ocupar o lugar de marido, pai ou irmão falecido. Em meados do século XX, no entanto, as mulheres começaram a buscar eleições por direito próprio, muitas vezes encontrando barreiras formidáveis, como obstáculos financeiros, estereótipos de gênero e intimidação e violência diretas. Por exemplo, uma legisladora estadual do meio-oeste dos EUA, eleita na década de 1970, disse que era forçada a comparecer às reuniões do comitê no Playboy Club local – uma forma dos homens do comitê desencorajarem sua participação.

A democracia, em outras palavras, estava falhando às mulheres.

No final da década de 1980 e contra a ditadura de Pinochet, por exemplo, mulheres chilenas pediam o fim dos estereótipos de gênero que as mantinham relegadas à esfera privada e exigiam maior acesso à política, especialmente como candidatas: “democracia no país e em casa!”, exclamavam. Em muitos países, a democratização levou à criação de cotas de gênero – leis que exigem que os partidos políticos apresentem certas porcentagens de candidatas mulheres. Entre 1991 e hoje, mais de setenta países em todo o mundo adotaram essas medidas.

Em um estudo elaborado pelo projeto Mulheres na Política 2020, divulgado pela ONU Mulheres em março, houve a divulgação de que o Brasil ocupa o penúltimo lugar entre as nações da América Latina no quesito representatividade feminina, englobando cargos executivos, legislativos e em ministérios – ficando apenas à frente de Belize e Haiti, em penúltimo e último lugar, respectivamente. Atualmente, a representação feminina no Congresso brasileiro é de apenas 15%.

Uma mudança recente na legislação Brasileira foi a Emenda Constitucional (EC) nº 97/2017 a qual vedou, a partir de 2020, a celebração de coligações nas eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, assembleias legislativas e câmaras municipais. Antes, a indicação de mulheres para participar das eleições era por coligação e, agora, será por partido. A alteração deverá impactar o fomento à participação feminina na política. Agora, o partido não vai poder ter como “salvaguarda” outros partidos para que, enquanto coligação, eles atingissem os 30%.

Além disso, em maio de 2018, por unanimidade, o Plenário do TSE confirmou que os partidos políticos deveriam reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para financiar as campanhas de candidatas no período eleitoral. Na ocasião, os ministros também entenderam que o mesmo percentual deveria ser considerado em relação ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão.

Para Mo Mowlam, uma impetuosa política feminista britânica da década de 1990, as cotas podem não ser suficientes. Ela reconheceu a distinção entre “estar na sala e influenciar a sala”: “Não é suficiente para as mulheres estarem na política, elas devem estar no poder”.

Agora, em todo o mundo, a paridade é a nova palavra de ordem. A democracia, argumenta-se, não é atendida por uma cota de 30 por cento que introduz uma ou duas mulheres no grupo político, mas por meio de mandatos de paridade que criam equilíbrio de gênero. A pressão por cotas e agora pela paridade vem da crença de que quanto mais mulheres ocupam cargos, menos chances suas vozes podem ser marginalizadas por aqueles que tradicionalmente ditam as regras. Quanto mais mulheres, prossegue o pensamento, mais o próprio poder é democratizado.

Uma mulher poderia assumir a Casa Branca? A associação histórica da política com os homens e masculinidade permanece forte. As campanhas exigem que as mulheres se envolvam em comportamentos contra estereotipados, como exibir sua ambição e sua inteligência ou falar negativamente sobre os oponentes. Hillary Clinton e Elizabeth Warren receberam elogios como senadoras, mas inúmeros artigos de opinião durante suas campanhas presidenciais lamentaram sua baixa simpatia. Um homem falando assertivamente está liderando, mas uma mulher fazendo o mesmo é vista como intimidação.

Elizabeth Warren e Hillary Clinton também caíram na hipocrisia sexista da narrativa da mídia “simpática”. Nesse ritmo, a única presidente mulher agradável será aquela que não quiser o cargo. Existem muitas razões pelas quais a simpatia é uma métrica falha para candidatos políticos, homens e mulheres. Mas há algo particularmente pernicioso na tendência recente de avaliar as mulheres dessa forma.

In casu, as ideias sobre feminilidade e masculinidade moldam as expectativas dos indivíduos em relação aos diferentes tipos de papéis e ocupações que mulheres e homens têm. A expectativa de que os líderes tenham qualidades masculinas remonta à fundação da América e, de fato, bem antes de os Estados Unidos existirem.

A presença das mulheres aponta para a saúde geral da democracia. Garantir que as mulheres tenham uma quantidade igual de poder pode proteger contra a decadência democrática. A presença das mulheres sinaliza um compromisso contínuo com os ideais de inclusão da democracia. No centenário do sufrágio feminino nos Estados Unidos, é hora de considerar a máxima: “Sem mulheres não há democracia”.

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