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Receitas sem segredos. Por Angela Barros Leal

Ovo mexido, na promiscuidade ostensiva da gema e da clara, é parte do jantar improvisado que preparo para meus netos, enquanto os pais não retornam do trabalho. O que eles pedem eu faço.

Quebro a casca do ovo na borda da pia e ergo a mão com rapidez, suspendendo por uma fração de segundo o fio translúcido da clara no trajeto entre pia e fogão. O ovo estala na manteiga que coloquei na frigideira em colheradas, salpicando gotas que espirram sem controle, atingindo meu braço como agulhas quentes.

Os meninos olham de longe. Um deles senta na bancada da pia, o outro equilibra-se em um banco alto, espectadores do processo de conversão da matéria prima em produto comestível. Mais de perto, mais de longe, observamos, na tortura do ovo, a definitiva impossibilidade do pinto. Exerço o comando da solução final do sequenciamento genômico de uma galinha desconhecida, e digo aos meninos, sem pensar em trocadilhos: É uma pena.

Eles riem e repetem: É uma pena! É uma rena! É uma hiena! Apreciam as rimas, identificam de ouvido quando algo “combina”. Gostam de relatos, de ouvir histórias e explicações. Por isso mesmo explico a eles que o destino daquele ovo estava marcado desde o balcão do supermercado e, antes disso, desde a estufa artificial da granja que o produziu, com seus dias eternos e sua mecânica produtividade.

Mal e mal estiveram perto uma galinha, ciscando à vontade num terreiro, cacarejando num quintal. Aliás, mal e mal viram um quintal, e devem ignorar o que seja um terreiro. Jamais seguraram nas mãos um ovo recém posto, sujo, ainda quente, um ovo pleno de uma vida condenada. A isso se deu o nome de “evolução”.

O ovo estala e se contorce na piscina dourada da manteiga, derrotado pelo calor. A clara expande-se em bolhas transparentes para se distanciar do fogo, a gema cresce, intumescida, um olho amarelo mimetizando o sol, deixando entrever a pele delicada que a envolve. Parece um vulcão, simplificam eles, familiarizados com o que viram nas telas.

Atravesso a gema com a ponta do garfo, perfurando o ovo em furos simétricos, por onde escorre a surpresa do mel fabricado por abelhas de ouro. O ovo sangra em amarelo, um riacho de lava dourada borbulhando na frigideira, encrespando-se nas bordas, buscando em vão o recuo para a falsa segurança do núcleo, até perder a mobilidade e se deixar enrijecer pela intensidade do calor.

Misturo gema e clara com presteza, causando ruídos (não recomendados, bem sei…) de metal contra metal. Os meninos tapam os ouvidos. O ovo, agora, é um todo granulado em amarelo vivo, cachos compactos onde ainda despontam ilhas claras, ilhas de clara. Um breve chuveiro de sal e o jantar com arroz branco está pronto.

Complementando a refeição ofereço a cada um la pièce de résistance: um sanduiche de queijo, a fatia grossa de queijo de coalho abraçada por duas fatias de pão de forma. Para eles, ovo mexido, arroz, sanduiche de queijo – isso sim é um banquete. O sanduiche em especial, o queijo derretido vencendo as barreiras do pão, espalhando-se acobreado sobre a superfície fumegante do grill, que já serviu a centenas e centenas de outros iguais.

Ninguém faz um sanduíche de queijo melhor do que eu, eles asseguram empolgados, sem saberem como eu lamento tudo que eles perderam.

Desconhecem o gosto de uma refeição preparada em panelas de ferro suspensas ou pousadas sobre o forno a lenha. Não sabem o que é um feijão, uma carne, um arroz incorporando em sua essência o perfume da madeira ardente, extraído pelo fogo puro, fervendo, tostando, assando, impondo sobre o alimento o máximo sofrimento, e obtendo dessa maneira o máximo sabor.

São familiarizados, como somos todos, com o fogão a gás, pelo qual renunciamos uma grande porção do paladar em troca da praticidade, da rapidez. E serão, em grau ainda mais elevado, comensais do forno de micro-ondas, da radiação eletromagnética agitando e aquecendo as moléculas de água dos alimentos, a comodidade e a pressa do dia a dia superpondo-se à lenta elaboração dos pratos.

Se hoje recordamos com saudade os pratos que faziam nossas avós, nossas mães, a partir de receitas centenárias, usando ingredientes oriundos da própria terra e do próprio chão, só posso lamentar por nossos netos, tão felizes com a simplicidade de jantares como o que fiz para eles. E me pergunto se um dia irão louvar, junto a seus filhos, a incomparável delícia desses modestos repastos de ovos mexidos, arroz e sanduiche de queijo, para o qual o melhor tempero só pode ser o amor imenso das avós.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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