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Quando o Brasil se libertará deste “presentismo” persistente que esquece o futuro e confunde o passado? Por Paulo Elpídio

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

“Poder e violência são opostos, onde um domina absolutamente, o outro está ausente”, Hanna Arendt, “Sobre a violência.”

Confessava-me um amigo, em discreta revelação, que, a cada vez que se punha a escrever sobre questões políticas correntes, e sempre que procurava oxigenar a realidade com algum toque teórico, era dominado pela incerteza e insegurança.

Percebia, com enorme preocupação, acentuar-se  esse estado de espírito na presença de seus interlocutores, nos encontros com amigos, nas mesas de chope, e, sobretudo, nos ambientes acadêmicos frequentados pela força de ofício intelectual. Assaltavam-no habitualmente dúvidas desconcertantes sobre como dissimular os seus vazios de inteligência, sem parecer, todavia, pedante. Como vestir o ar intelectual que tanto sucesso faz entre interlocutores deslumbrados, com menção a autores em voga e citações guardadas para as ocasiões especiais sem a obrigação de aprofundar a sua profícua prosa?

Tomava, nesses momentos fugazes, com a prudência dos homens bem avisados os cuidados propícios diante de suas próprias expectativas. Causava-lhe ansiedade e uma certa frustração a sua insegurança no manejo do equipamento a que recorrem as criaturas cultivadas para exibir os dotes intelectuais e torná-los visíveis aos circunstantes reverentes. E indagava-se, nessas ocasiões, sobre o procedimento adequado que os intelectuais seguem para merecer esse distinguido tratamento.

Escolhera a escrita, à falta de dotes para o exercício de outras artes, o canto, a música, a pintura ou  práticas julgadas menores, tais a heráldica, a memorabilia e a genealogia. Fixara-se, por fim, na artesania das palavras desde que, a exemplo de Monsieur Jourdain, descobrira escrever habitualmente em prosa, já que não lhe fora dado talento suficiente para expressar-se em poesia.

Não ficavam, entretanto, por aí, as suas aflições. Como uma pessoa dada às letras haverá de escapar à armadilha da qual poucos se livram, os que escrevem em prosa e até mesmo constroem poesia, ao ceder à ambiguidade das palavras e dos tropos? Notara, entretanto, que alguns trabalhadores da palavra, mais argutos e espertos, livravam-se dos riscos da sorte, graças a desvios salvadores. Porventura devesse falar por anexins, pela dissimulação de saberes coletivos, a exemplo do personagem de Artur Azevedo, ou escondesse suas opiniões atrás de parábolas bem construídas. O risco das palavras está na dissimulação mal aviada do que as pessoas pensam.

De que perigos, afinal, estamos a falar?

A quem escreve, sem condicionamento de gênero literário, sobretudo os que se aventuram pela cabotagem arriscada das coisas da política, restam poucas alternativas diante do julgamento inevitável a que se submetem as criaturas de opinião. Raro que sejam consideradas pelo que pensam; certamente são, entretanto, julgadas pelo que o leitor lhe atribui. A opinião do autor forma-se, na maior parte dos casos, pela vontade do leitorado, pelos olhos que são trazidos à leitura do texto, como se comprazia afirmar Barthes.

A percepção do conteúdo, a ideia, não se encontra no que está escrito, porém na leitura de quem aborda a matéria escrita. Pois aí está. O medo daquela criatura estava precisamente em como seria interpretado e não pelo que afirmara. Duvido que dessa preocupação, angústia renovada, digamos assim, seja poupado quem quer que escreva para a leitura de terceiros. Como o amigo penitente, trago comigo a síndrome da decomposição da opinião, de como nossos escritores haverão de ser lidos e percebidos pelos nos lerem. Em outras palavras, como texto e ideias serão reconstruídos pelo receptor. Sabe-se que nesses prélios entre autor e leitor, emissor e receptor, segundo a fórmula pedante dos linguistas, a recepção faz-se pela recusa ou  aceitação, raramente torna-se objeto da análise em suas projeções críticas criadoras.

Tamanhos riscos cresceram em tempos recentes, por força de causas variadas e contraditórias. Pela revolução semântica em cujo nome é trocado e desvirtuado o significado real das palavras, pela intolerância gerada no ventre das utopias transfiguradas em ideologia, pela certeza das ideias salvadoras, pela condenação do passado e a antevisão de um futuro imaginado, pressentido entre os impulsos a que se chama por estes dias de progresso.

Se nos é reconhecida a condição de intelectual pelo juízo da contemporaneidade, corremos o risco incontornável de ser considerados de “esquerda”. Se não formos premiados com esse rótulo de vanguarda, sobram as categorias da impostura ou da “direita”, tratamento pejorativo do qual ninguém se livra em vida ou depois da morte. Nesses termos, progressistas são os descompromissados com o passado e os agentes da modelagem do “homem novo”, fascista é o outro.

Nos países periféricos – recorro perversamente a um paradigma de esquerda – esse estado pós-semântico agravou-se nas últimas décadas, nos anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. A contraposição esquerda-direita ruíra nos anos 90, com a desagregação do império soviético, desde os começos da guerra civil europeia dos anos 17. Renasceria, entretanto,, com mais força e perduraria até tempos recentes. De tal modo confundiram-se doutrinas e conceitos, realidade e fantasia, de lá para cá, que, a rigor, muito poucos sabem, por estes tempos contraditórios, como empregar adequadamente os motes substantivados “esquerda” e “direita”. Fazem-no com desenvoltura, aliás, cada um enfiando na sua linguiça os embutidos da sua preferência.

Não somos exceção. Temos, no Brasil, uma visão muito peculiar dessa destemperança ideológica. E dela fizemos arma poderosa que, em mãos pouco afeitas à racionalidade, transformou-se em engenho de destruição, cujos estilhaços cobrem consciências e bons propósitos anunciados. Ao estilo bolchevique e dos campos hegemônicos que incharam nos seus quintais, a técnica é simples e persuasiva: o argumento a contraditar, posto na mira de longo alcance da descarga de tiro, interessa menos do que o golpe cirúrgico para a desqualificação do opositor. Valem menos as ideias e suas interpretações do que o interlocutor que vocaliza ou registra a crítica a ser desmontada. O objetivo do ataque não é a afirmação, mas quem a profere, quem dissente e tem coragem para a expor.

O Brasil, como de resto a América Latina, têm um passado mergulhado em políticas e atos infames, a história o registra. A esquerda clássica, intelectual, mas, também a sua vertente orgânica, da militância miúda, das sobras do internacionalismo de outrora, aprofundou a análise da questão e o fez com a lupa da sua visão peculiar da História. É um tema muito estudado,  no qual se recolhem ideias e ações missionário-ideológicas de justificada projeção. Com ele, os conceitos de esquerda e  direita, fascismo, comunismo, nazismo, socialismo, capitalismo soam com maior ou menor intensidade e recobrem verdades e realidades contraditórias.

Segundo a forma como essas pendências sociológicas são enfrentadas, os autores são recolhidos a escaninhos classificatórios, condenados ou celebrados, à direita e à esquerda – e injuriados na justa medida dos seus merecimentos…

As tragédias de um século mal começado e dos que o precederam não foram suficientes para conter a onda de “presentismo” que se assenhoreou dos intelectuais e até mesmo dos sábios da academia.

O presente é um dado em reelaboração permanente, a realidade provisória, a construção que não se conclui, moto continuum enquadrado por conceitos, doutrinas e normas que se alimentam mutuamente. Convivemos com um  “presentismo” que não sai do estaleiro de obras, e que é reconstruído a cada viés que vem somar-se aos  acumulados. E os guardamos em um passado que procuramos, também, renovar, e dar-lhe a cor dos nossos dissensos teóricos e conceituais. Do futuro, cultivamos uma imagem fluida, indelével, das coisas imprecisas, a visão de um “homem novo” livre de suas origens, desenhado segundo as regras vitruvianas de uma criatura perfeita, em uma sociedade na qual se abre um “espaço público” para todas as liberdades prometidas.

Cabem aqui, bem a propósito, frase que tanto se viu e ouviu repetida nos  vazios de esperanças que se produziram entre as duas grandes guerras, na Alemanha: o que nós queremos, não sabemos e o que nós sabemos não queremos…

Associei os eventos recentes de uma teimosa revisão do passado, mediante a desfiguração das imagens de atores da História, a um filme comum, pouco cotado aliás entre especialistas e ignorado entre analistas sociais. “Nascido em 4 de julho”, dirigido por Oliver Stone, o filme conta a história de Ron Kovic, voluntário para a guerra do Vietnam, inválido, de retorno aos Estados Unidos. Recebido como herói, vê-se logo confrontado com a realidade: a rejeição da guerra, a discriminação contra deficientes físicos militares, diante de seus direitos negados pelo país que os sacrificara em uma guerra distante e inútil.

A fala de Trump no 4 de julho reflete a exacerbação dos ânimos quanto a personagens celebrados pela história, de Colombo a ex-presidentes americanos. Aos ímpetos nascidos das perdas dos sacrificados nos conflitos recentes, nos Estados Unidos e em outros países, somam-se movimentos organizados a partir de grupos de inspiração ideológica. Das guerras em terras longínquas, pouco recolhemos como lição trágica de perversos jogos de poder. Assistimos com confessada tolerância, mais que indiferença,  o ressurgimento de formas mal desenhadas de totalitarismo que animam movimentos populistas e fortalecem ações milicianas de rua.

O risco de tratar-se de questões assim tão profundas – o Brasil não escapou à força desses movimentos – está em que as suas origens e a razão dos protestos sejam confundidos e afogados em um enorme “presentismo” do qual nós, brasileiros, não conseguimos nos livrar.

Assistimos, aqui e em outros lugares, a um acerto de contas com o passado, de cara para um presente instável e mal compreendido – e de um futuro dominado  pelas milícias da fé e das ideologias renascentes.

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