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Por um Poder Judiciário independente. Por Schubert Machado

Schubert de Farias Machado é advogado e diretor do Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET.

Foi divulgado na imprensa o Termo de Cooperação Técnica firmado entre a Secretaria da Receita Federal e o Conselho Nacional de Justiça, objetivando o “desenvolvimento de cooperação técnico-científica entre o CNJ e a RFB para o desenvolvimento de pesquisas e atividades voltadas à eficácia e eficiência do contencioso tributário administrativo e judicial.

O Secretário da Receita Federal, José Tostes Neto, anuncia que a efetividade dos processos tributários está muito baixa, dificultando a recuperação dos créditos públicos, e essa cooperação entre o CNJ e a Receita Federal ajudará a identificar e analisar os principais fatores que impactam no tempo, na eficácia e nos resultados da resolução de conflitos tributários.

Tudo parece muito bom e de fato seria, se não estivéssemos diante de uma explicita cooperação do CNJ com apenas uma das partes interessadas no resultado do imenso contencioso tributário, deixando de lado todos os demais jurisdicionados. Isso reclama reflexão sobre o acerto dessa particular iniciativa.

Da separação dos Poderes do Estado
O Estado de Direito é fundado na clássica teoria da tripartição de poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, que atribui funções específicas e inerentes a cada um deles, de forma a assegurar o controle recíproco, absolutamente indispensável à democracia como forma conter abusos. Nossa Constituição trata da separação de poderes do Estado como clausula pétrea (art. 60, § 4°, III).

É certo que essa separação não é absoluta. O Legislativo pratica atos administrativos e jurisdicionais. O Executivo pratica atos legislativos e jurisdicionais. E o Judiciário pratica atos administrativos e legislativos. Mas o fazem apenas na medida em que esses atos, próprios das atribuições de outro poder, sejam instrumentais em sua atividade típica e na exata medida necessária a garantir a independência de cada um em relação aos demais.

Assim, não é possível atribuir a órgãos do Poder Judiciário uma função típica do Poder Executivo e que não seja desenvolvida como instrumento de sua atividade jurisdicional, como é o caso da cobrança de tributos, que exige uma relação jurídica direta entre o Estado e o cidadão contribuinte. Ao desenvolver tais atividades o Estado age como pessoa e como tal deve ser representado pelos órgãos da Administração, especialmente quando precisa se dirigir ao Judiciário para alcançar o patrimônio daqueles que considera seus devedores.

Nas palavras de Sampaio Dória, o “que mais caracteristicamente acentua e eleva a função judiciária à categoria de poder, é a prerrogativa de se opor ao executivo em suas ilegalidades, em seus abusos de poder.” É precisamente porque não cobra que o Judiciário pode dizer se a cobrança é válida, ou inválida.

Do direito ao livre acesso ao Poder Judiciário
O livre acesso ao Poder Judiciário é garantia do cidadão contra o arbítrio. O Estado de Direito subtraiu a faculdade do exercício dos seus direitos pelas próprias mãos, e somente pode alcançar o cidadão através de ordem judicial.

Essa é a razão de ser das ações judiciais que o Estado promove para a cobrança de tributos, especialmente a execução fiscal, que existe, antes de tudo, como garantia de que o Estado somente pode lançar mão sobre o patrimônio de quem considera seu devedor se um juiz assim determinar, depois de dar oportunidade para o controle da legalidade dessa exigência.

No momento em que a Receita Federal firma termo de cooperação com órgão do Judiciário buscando mais eficiência e eficácia para as ações de execução fiscal, privilegia apenas o seu próprio interesse arrecadatório e nega ao jurisdicionado o direito a um juiz independente e imparcial. Apequena a garantia de livre acesso ao Judiciário, que é a garantia das garantias, sem a qual o cidadão não terá a quem reclamar a efetividade das demais.

Da legalidade tributária
O tributo somente pode ser exigido quando estiver rigorosamente conforme a lei. Essa é uma das garantias que alicerça o Estado de Direito. Para assegurar sua efetividade devem existir mecanismos de controle da legalidade tributária e o direito ao livre acesso ao Judiciário é o mais importante desses mecanismos. Até porque, as cobranças abusivas praticadas pelo fisco são do conhecimento de todos os que lidam com o Direito Tributário em nosso país.

Dessa forma, o Judiciário não pode ter especial interesse na eficiência e eficácia dos processos judiciais de cobrança tributária, pois ao manifestar tal interesse prejudica ou mesmo esvazia o controle da legalidade do tributo. Abdica da necessária posição de imparcialidade para assumir a defesa dos interesses da Fazenda.

Não se diga que o envolvimento do Judiciário com a atividade de cobrança dispensaria o controle da legalidade dessa exigência, uma vez que estaria sendo realizada por quem exerce o seu controle e, portanto, faria de modo acertado. Caso isso fosse verdade, não teria o menor sentido a separação dos Poderes, bastando atribuir ao Judiciário ampla competência para tudo fazer. Não seria isso o que já está ocorrendo?

Da Isonomia
É princípio geral do processo o tratamento uniforme das partes. Autor e réu devem ter as mesmas oportunidades perante o Juiz. Todavia, sob o escudo de um falso interesse público, muitas vezes o Estado tem garantido a si próprio uma posição privilegiada em relação ao cidadão.

É precisamente o que ocorre nesse caso. Realmente, estabelecer a cooperação do Judiciário com a atividade de cobrança de tributos é o mais desmedido dos privilégios. Ao contrário de atender, contraria o verdadeiro interesse público, que não se confunde com o interesse da Fazenda Pública. Em “boa verdade científica, o interesse fazendário subordina-se ao interesse público e, por isso mesmo, só poderá prevalecer quando em perfeita sintonia com ele. Não pode atropelar os direitos constitucionais do contribuinte…”

Quando o cidadão busca em juízo receber algum valor do fisco precisa passar pelo longo e penoso processo de conhecimento, respondendo a todos os recursos e incidentes eficientemente intentados pela Fazenda até obter uma decisão que reconheça seu direito. Depois amargará a espera do cumprimento da sentença, até obter o valor do seu crédito. O último golpe é desferido com a demora do pagamento do precatório, que tem sido complacentemente tolerada pelo STF. Curioso notar que ao mesmo tempo em que busca eficiência e eficácia nos seus processos de cobrança, o Ministério da Economia se refere aos precatórios como despesas indesejadas.

Conclusões
Em síntese, a Fazenda Nacional tem os meios, ou deveria ter, para defender pessoal e diretamente os seus interesses arrecadatórios. Ao Judiciário cabe controlar essa atividade e não facilitá-la.

O privilégio criado com essa cooperação entre CNJ e Fazenda contraria o interesse público na mesma medida em que rompe com os mais elementares princípios que orientam o Estado de Direito. Ofende o princípio da isonomia e despreza a legalidade tributária, abrindo caminho para o esvaziamento das proteções e garantias constitucionais dadas ao cidadão e a implantação da tirania fiscal.

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