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Por que devemos falar sobre a violência obstétrica? Por Kelly Marinho e Bianca Callegarin

Kelly Marinho Bezerra – Advogada autônoma, feminista, graduada em Direito pelo Centro
Universitário Internacional – UNINTER. Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade
Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul- PUC/RS.
Membro da Comissão de Direitos das Mulheres e da Comissão da Família da OAB/CE – Subseção do
Sertão Central. Militante nas áreas do Direito da Mulher, Direitos da Família, Direito Homoafetivo,
Direito Civil e Direito Humanos e com ênfase no Direito das Mulheres onde presta auxílio jurídico às
mulheres em situações de risco e demais áreas, observando as premissas do movimento feminista.

A violência obstétrica está presente e atinge mulheres de todas as classes sociais, embora o maior destaque esteja no desrespeito sofrido pelas parturientes atendidas pela rede pública. As mulheres negras, pobres e periféricas – não surpreendentemente – aparecem no topo dessas estatísticas, evidenciando o grave problema do racismo estrutural e da violência de gênero, que, infelizmente, assolam nossas relações sociais.

Para muitas mulheres, em especial aquelas que sempre ansiaram pelo momento de se tornarem mães, o parto é considerado como um ritual, sendo conhecido como um evento feminino onde a mulher vive o ápice da sua realização pessoal.

Nos primórdios as mulheres davam à luz em seus próprios domicílios, contando apenas com o auxílio de uma parteira e alguns membros da família. Foi somente com os avanços tecnológicos que iniciou-se a hospitalização do parto, o qual acaba sendo visto muitas vezes como um evento patológico que necessita de intervenção médica e medicamentosa.

Nesse processo, reforçou-se a ideia de que o parto vaginal seria um sofrimento desnecessário à mulher, sempre sendo associado a dor intensa, causando medo e repressão de forma violenta, bem como dando abertura ao atual modelo de assistência obstétrica, que seria o parto cesáreo.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde – OMS, na rede de saúde pública do Brasil, 55,6% dos 2,9 milhões de partos realizados anualmente se dão por meio de cesariana. Quando voltamos os olhos para saúde privada, tais índices são ainda maiores, chegando até a 84,6% de partos cesáreos.

O crescente número de partos por cesariana no Brasil indica a relevância da atual discussão acerca da violência obstétrica, na medida em que inúmeras cirurgias cesáreas são realizadas de forma desnecessária, acarretando na realidade de que uma a cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto.

A violência obstétrica engloba todos os tipos de agressões sofridas pela parturiente durante o trabalho de parto, pós-parto e abortamento. Para muitas mulheres o parto se transforma em um acontecimento doloroso e traumático, causando múltiplas intervenções e direitos violados.

Não é raro se encontrar mulheres que decidem “fechar a fábrica” logo após o nascimento do primeiro filho ou que proferem frases como “essa experiência já foi suficiente”, muitas vezes sem perceber o trauma enraizado por trás de tais colocações.

Bianca Callegarin Ungaratti – Advogada autônoma, feminista, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Militante nas áreas do Direito das Famílias, Direito Homoafetivo, Direito Criminal e Direito Civil, com ênfase nos direitos e garantias das mulheres e da população LGBTQIA+

Com o avanço da causa feminista e a luta pela garantia e efetiva aplicação dos direitos das mulheres, a violência obstétrica tornou-se uma das maiores pautas atuais, posto que expressa um tipo específico de violência praticada contra as mulheres no âmbito da assistência à gestação, por vezes sem que essas sequer percebam que estão sendo violentadas. Nesse diapasão, o direito, ao menos em teoria, acompanha a sociedade, assegurando a manutenção da paz, da ordem, segurança e o bem-estar comum. Assim, surgem propostas de leis que seguem em trâmite nos âmbitos estadual e federal.

Um marco de grande relevância na violência obstétrica foi a promulgação da Lei nº 11.634/2007, que dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Tem-se ainda a Lei nº 11.108/2005, que garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

Ainda, o conceito de violência obstétrica foi disciplinado pela primeira vez na Lei Municipal nº 3.363/13, da cidade de Diadema – SP. Atualmente, em âmbito nacional, vem sendo discutido o Projeto de Lei 878/19, que reúne legislações regionais e apresenta uma definição do que seria a violência obstétrica, qual seja:

“Art. 13. Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos naturais relacionados a gestação, pré-parto, perda gestacional, parto e puerpério pelos (as) profissionais de saúde, por meio do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.

Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo (a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em trabalho de parto, e no pós-parto/puerpério.”

É valido ressaltar ainda que o estado do Tocantins promulgou a Lei nº 3113/2016, instituindo o chamado “Estatuto do Parto Humanizado” a fim de assegurar melhor assistência às mulheres em seu período gravídico-puerperal em instituições públicas e privadas daquele local.

Entretanto, apesar de algumas leis estaduais e municipais e da discussão legislativa a nível federal, ainda não existe uma lei ou um tipo penal específico que puna os profissionais de saúde causadores da violência obstétrica, porém tais atos são passíveis de diversas tipificações na esfera penal como injúria, maus-tratos, ameaça, constrangimento ilegal, lesão corporal e, não raramente, tentativa de homicídio, crimes esses todos previstos Código Penal Brasileiro.

Não menos importante, cumpre destacar que a violência obstétrica pode ser também objeto de discussão na esfera cível, especialmente em ações de indenização por dano moral, material e/ou estético.

A violência obstétrica, para o direito, apresenta-se como uma violação da responsabilidade civil, penal e ética dos profissionais perante a violência à mulher parturiente quando não são respeitados seus direitos e vontades, posto que cada parturiente deve ter respeitada a sua individualidade, não cabendo a generalização pretendida pela unidade hospitalar, que deve estar preparada para enfrentar situações de risco durante todo o período de trabalho de parto.

Há que se ressalvar, entretanto, que não é qualquer intervenção dos profissionais de saúde que ensejam em violação ao atendimento humanizado. Tratam-se apenas daqueles atos cujo benefícios não são efetivamente comprovados, realizados de forma desnecessária, sem a devida comunicação à mulher e que implicam em prejuízo ao processo natural de parto e em elevação do sofrimento físico e psicológico.

O que define a violência obstétrica não são apenas os procedimentos, mas as formas como estes são
conduzidos. Assim, diversos são os tipos de violência vivenciados pelas mulheres no período
gestacional, como por exemplo:

· Restrição da posição para o parto;
· A cesariana eletiva sem consentimento da gestante ou sem indicação clínica;
· A manobra de Kristeller (que consiste em pressionar a barriga da mãe durante o parto);
· Proibição de acompanhante durante o parto, bem como restringir a entrada do acompanhante por ser do sexo masculino;
· Violência psicológica;
· Proibir a mulher de se alimentar durante o trabalho de parto;
· Negar analgesia quando a mulher solicita;
· Restringir os movimentos da mulher sem que haja nenhum impedimento clínico (a mulher tem o direito de se movimentar e parir na posição que se sentir mais confortável);
· Contato com filho negado após o nascimento;
· Procedimentos que violem a intimidade e o pudor da mulher, como os toques excessivos antes e durante o parto.

Ou seja, a violência obstétrica abrange a esfera física, psicológica e sexual da mulher, podendo adentrar até mesmo em seu âmbito financeiro, quando a instituição e/ou planos de saúde visam obter lucro com a realização de partos.

Deve-se ter em mente ainda que eventuais intervenções médicas, mesmo que sejam autorizadas pela
parturiente, não podem ser resultado de pressão psicológica ou qualquer forma de constrangimento por parte dos profissionais que acompanham o parto, mas sim devem ser frutos de sua livre e espontânea vontade.

Evidências científicas comprovam a eficácia da prática humanizada na assistência ao parto, tanto para a saúde da parturiente, quanto do nascituro, sendo estas medidas de proteção e cuidado, recomendações feitas pela OMS, em um documento implementado em parceria com a Organização das Nações Unidas – ONU, o qual tem como objetivo garantir que não só as mulheres sobrevivam às complicações do parto, se surgirem, mas também que elas prosperem e alcancem todo o seu potencial para a saúde e a vida.

O Programa de Humanização foi instituído no Brasil, no âmbito do SUS, pela Portaria nº 569/GM4, do Ministério da Saúde, com as seguintes diretrizes:

“a) Proporcionar à gestante e ao recém-nascido um atendimento digno e de qualidade;
b) Reduzir as altas taxas de morbimortalidade materna, perinatal e neonatal;
c) Melhorar o acesso, a cobertura e a qualidade do acompanhamento pré-natal, assistência ao parto e puerpério e assistência neonatal;
d) Aprimorar a assistência à saúde da gestante nos níveis ambulatorial, básico e especializado;
e) Integrar todos os níveis da assistência à gestante, ao parto e ao recém-nascido;
f) Implantar Centros de Regulação Obstétrica e Neonatal nos níveis estadual, regional e municipal, com atendimento rápido e qualificado, de acordo com a demanda da população específica, ou seja, a gestante e o recém nascido”.

Com efeito, a Constituição Federal resguarda o direito à saúde como garantia constitucional, juntamente com portarias e resoluções que visam garantir o atendimento digno e de qualidade durante a gestação, parto e pós-parto, onde a gestante poderá optar por uma equipe humanizada que atenda a seus direitos e desejos, no intuito de minimizar as negligências sofridas.

Alguns tribunais têm entendido que o parto humanizado é um direito fundamental, onde as mulheres devem receber total proteção para não serem vítimas de nenhuma forma de violência ou discriminação, sob pena de caracterização de dano moral, fixando a indenização devida, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Destaca-se: a violência obstétrica pode se apresentar sob a forma de violência física, verbal, emocional, práticas sem consentimento, cerceamento à autodeterminação e à autonomia. Esse tipo de violência pode contribuir ainda para a depressão pós-parto, dificuldade da mulher em manter relações sexuais e os mais diversos traumas em todos os setores de sua vida.

Conforme mencionado alhures, a violência obstétrica ainda não se encontra tipificada por nenhuma legislação específica, sendo amparada por analogia a tipificações de crimes ou condutas já existentes nas esferas cível e criminal. Entretanto, ainda assim, é de suma importância que as denúncias ocorram.

Para denunciar os casos de violência obstétrica a mulher deve exigir o seu prontuário médico e levar as práticas irregulares ao conhecimento do Conselho Regional de Medicina e/ou o Conselho Regional de Enfermagem, Agencia Nacional de Saúde – ANS (para os casos envolvendo planos de saúde), Delegacia de Polícia Civil (em casos de violência física ou contra a honra), Ministério Público, Ministério da Saúde e, ainda, a mulher deve buscar auxílio jurídico junto a um advogado para orientá-la no ingresso de eventuais ações judiciais.

Falar sobre a violência obstétrica é de extrema importância para levar ao conhecimento do maior número possível de mulheres que esse tipo de conduta por parte de profissionais da saúde causam graves consequências tanto no parto, como para além dele, haja vista os possíveis danos emocionais e psicológicos à mãe e ao bebê.

É nítido que, na maioria dos casos, a violência obstétrica se dá simplesmente por desconhecimento da parturiente acerca dos seus direitos e garantias, os quais não são debatidos durante o seu pré-natal e pré-parto e, muito menos ainda, são tratados pela mídia, deixando no limbo informações de grande valia e que tratam-se evidentemente de uma questão de saúde pública.

Esse é um texto escrito por mulheres, mas não só para mulheres e ainda menos só para aquelas que desejam ser mães. Todo mundo conhece uma mulher que está gestante, que já pariu ou que pretende gestar uma criança. Qualquer um, na qualidade de ser humano, de pais, de tios, de padrinhos, de avós ou qualquer que seja a posição que ocupe, tem o dever de lutar por direitos, em especial de populações vulneráveis, como é o caso das mulheres no Brasil.

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