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Políticas de Segurança Nacional nas guerras comerciais, por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial, internacional, contratos, negociações e soluções de conflitos. É mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com. Escreve semanalmente no Focus.

Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

Em janeiro deste ano, o presidente Donald Trump impôs tarifas sobre aço e alumínio importados para os Estados Unidos, com o intuito de ajudar a aumentar a produção e fortalecer as indústrias americanas nesta área, o que ele diz ser uma questão de segurança nacional. Mas afinal, do que se trata segurança nacional? Há limites para uma nação impor medidas de segurança, as quais afetam uma ordem econômica mundial oriunda de diversos tratados e acordos? O direito econômico internacional atualmente busca compreender este cenário e encontrar as respostas.

No século XVII, o Tratado de Vestefália, o Tratado Hispano-Neerlandês e o Tratado dos Pirenéus, ao acatarem consensualmente noções e princípios como o de soberania nacional e o de Estado-Nação, inauguraram o que chamamos de moderno sistema internacional. Neste conceito, soberania nacional é a autonomia da nação de determinar as suas próprias diretrizes e também diz respeito ao seu poder político dentro do seu respectivo território, sobretudo no que versa à defesa dos interesses nacionais.

Com o fim de preservar a nação contra ameaças internas e externas, os Estados desenvolveram as suas próprias Políticas de Segurança Nacional, legislação esta que contém critérios sobre as possíveis ameaças e que visa a proteção da sua população, da sua economia interna etc,  bem como as formas de combate àquelas. No Brasil, a política em vigor é a Lei de Segurança Nacional (LSN) de número 7.170/83, valendo ressaltar que esta foi editada durante o período da Guerra Fria. Nos Estados Unidos, o Congresso do país criou, em 1947, a National Security Act.

Historicamente, o conceito de ameaça dentro da Política de Segurança Nacional já foi amplamente enquadrado em termos de rivalidade entre Estados. No entanto, com o fim da Guerra Fria, os Estados se concentraram cada vez mais em ameaças difusas como terrorismo, crime transnacional, corrupção, doenças infecciosas, degradação ambiental e mudanças climáticas. A novidade mais clara trata-se dos riscos “sem atores aparentes”, como mudanças climáticas ou pandêmicas, que põem em a segurança, mesmo sem manifestar má intenção em relação ao Estado ou à sua população.

Esses desenvolvimentos dão origem à “nova” segurança nacional: um crescente conjunto de práticas de segurança agnóstico à fonte ou natureza de uma ameaça, sem limites de tempo e espaço, e descentralizado de qualquer grande poder superior ou conflito interestadual. Assim, a cada dia, com o surgimento de novas ameaças, as Políticas de Segurança Nacional dos Estados vem tratando sobre uma ampla gama de riscos como questões de segurança, a um nível extremamente alto de generalidade.

O crescente estado de segurança nacional levanta uma série de preocupações, uma vez que os imperativos de segurança são frequentemente implantados como uma justificativa para se afastar de regras e compromissos comerciais internacionais, criando cenários que interferem diretamente na economia internacional, se escondendo atrás de um véu de sigilo, violando o direito público e as liberdades civis.

Ademais, tendo em vista que diferentemente do passado, hoje as principais disputas geopolíticas acontecem dentro das instituições de comércio e investimento, e não fora delas, e que grandes rivais estratégicos como China, Rússia e Estados Unidos também são concorrentes econômicos dentro do mesmo sistema comercial multilateral, estudiosos apontam que o instrumento de Segurança Nacional está sendo utilizado como “arma de guerra”. Estes afirmam que políticas abrangentes ameaçam cada vez mais as regras que governam os fluxos de comércio e investimento, com supostos abusos nas leis econômicas, representando uma ameaça significativa e permanente ao sistema.

Desta forma, utilizando-se da prerrogativa de segurança nacional e suas vastas possibilidades de ameaças, os Estados poderiam adotar boicotes ou sanções discriminatórias para corrigir o que consideram um comportamento antiético por outros países ou atores não estatais. Eles também podem restringir seletivamente a exportação ou importação de armas ou produtos sensíveis. Os governos podem restringir as importações para proteger setores estratégicos e vitais ou restringir as exportações para garantir que seus militares tenham acesso a certos bens.

Estudiosos sugerem que países, incluindo os Estados Unidos, poderiam usar uma declaração de emergência climática para suspender a perfuração de petróleo, restringir transporte por caminhão ou outras atividades intensivas em combustíveis fósseis ou impor sanções ao tráfego de combustíveis fósseis.

E como as Políticas de Segurança Nacional contemporânea fornecem um reservatório profundo de possíveis justificativas para se afastar das regras comuns de comércio e investimento, esses desenvolvimentos provocam ansiedade considerável sobre o futuro da ordem econômica internacional, com o justo medo de que as regras existentes possam desmoronar sob uma série de reivindicações de segurança.

No meio jurídico, o desafio da segurança nacional se concentrou em como os tribunais internacionais podem aplicar tratados de comércio e investimento para filtrar reivindicações legítimas das abusivas, mas ainda não há respostas para tanto.

A retórica de segurança nacional está cada vez mais se infiltrando nos assuntos geopolíticos e econômicos globais. Nos Estados Unidos, o governo Trump adotou uma política abrangente de segurança internacional para justificar medidas econômicas agressivas no exterior e restrições discriminatórias de imigração no país. Mas os Estados Unidos dificilmente estão sozinhos. Em 2019, a Organização Mundial do Comércio (OMC) enfrentou desafios para medidas tomadas pela Rússia, Japão, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos, todos justificados por razões de segurança. Desenvolvimentos semelhantes ocorreram em toda a África e partes da Ásia.

Mas a utilização deste instrumento não é novidade, sendo a Guerra Fria a base para essa expansão, com o crescente uso de ferramentas econômicas discricionárias, como garantias e embargos como meio de política externa, o uso de ferramentas econômicas como ajuda externa e o surgimento da segurança nacional como tema predominante no discurso doméstico sobre áreas militares, educação e direitos civis.

À medida que o leque de ameaças à segurança se expande, o mesmo ocorre com o leque de produtos e indústrias que podem ser considerados sensíveis à segurança, conforme indicado pela proliferação e expansão dos mecanismos de “triagem de investimentos”, que analisa fusões e aquisições. Nos Estados Unidos, essa função é desempenhada desde 1989 pelo Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos (Committee on Foreign Investment in the United States / CFIUS). Em 2018, por exemplo, Donald Trump bloqueou a proposta de aquisição da Qualcomm, empresa que se dedica ao fabrico de ‘chips’ eletrônicos, por parte da chinesa Broadcom, impedindo a concretização daquele que seria o maior negócio da indústria tecnológica e afastou os receios de que a China ganhasse uma posição dominante negócio das telecomunicações.

Além disso, eles podem invocar a segurança nacional para justificar o desvio de processos administrativos ou alterar a estrutura regulatória e, ao fazê-lo, interromper o comércio ou prejudicar as expectativas dos investidores estrangeiros. E a segurança nacional pode até apoiar uma apreensão ou expropriação direta de investimento estrangeiro. Na década de 2000, houve uma série de momentos em que as preocupações de segurança nacional foram amplamente aplicadas para desestabilizar algumas economias, desde a propriedade estrangeira do gás natural russo até bloquear uma aquisição que colocaria seis portos dos EUA sob a administração da Dubai Ports World, nos Emirados Árabes. Essas controvérsias levaram a esforços contínuos para repensar como os mecanismos de triagem são projetados.

Esforços recentes dos Estados Unidos e da Austrália, entre outros, para restringir o investimento e o comércio com a empresa chinesa de telecomunicações Huawei desencadearam debates na OMC sobre a legalidade das medidas. Separadamente, os Estados Unidos surpreenderam muitos observadores de longa data quando invocaram a segurança nacional.  De maneira mais ampla, as reformas recentes da Política de Segurança Nacional dos EUA ampliaram a jurisdição das avaliações de segurança nacional do Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos para incluir transações envolvendo “tecnologias críticas”, “infraestrutura crítica” ou “dados pessoais sensíveis”.

O surgimento de novos tipos de ameaças à segurança também transformou a natureza temporária destas, resultando na criação de emergências de tempo indefinido. Enquanto existia o paradigma do adversário da era da Guerra Fria, era possível imaginar um ponto final para os conflitos interestaduais quando a ameaça era eliminada ou o inimigo vencido. O mesmo não pode ser dito para muitas das novas ameaças à segurança que agora ocupam os Estados. Muitas dessas ameaças são difusas e provavelmente se tornarão características permanentes da vida contemporânea.

Torna-se claro que o sistema de direito econômico internacional agora está passando por uma transformação, à medida que o arcabouço excepcionalista enfrenta novos desafios, com a segurança nacional em ascensão sobrepondo-se ao multilateralismo. Esses desenvolvimentos desafiam a relação entre comércio e segurança de maneiras que transformam a política no sistema comercial.

Apesar da ameaça que a expansão das medidas de segurança representa para o sistema econômico, até o momento a segurança nacional ocupou um lugar relativamente periférico nos esforços em andamento para imaginar alternativas institucionais ao sistema atual. No entanto, esses esforços para reformar as leis de investimento e comércio fornecem terreno fértil para opções de design institucional que, se modificadas e ampliadas, poderiam oferecer uma estrutura promissora para gerenciar a crescente sobreposição entre segurança nacional à economia global. Isso inclui fóruns políticos estruturados para a resolução de disputas e a centralização de tribunais internacionais.

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