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O riso divino. Por Angela Barros Leal

Do ponto de vista do olho de um pássaro (from a bird’s view, à vol d’oiseau, como preferem os pintores, os desenhistas), estando esse dito pássaro (uma rolinha, um bem-te-vi, um urbano pardal) pousado no ramo de uma árvore de significativa altura, tudo o que ele vê abaixo deve ser um aglomerado de manchas bidimensionais, em claro-escuro.

O bordado das folhas dançando no chão do meio-dia, a sombra dos galhos sobre outras plantas, sobre pedras, bancos, animais, pessoas, sobre elementos estáticos ou dinâmicos do terreno cá embaixo, para ele nada disso se diferencia. Nada deve ser mais importante do que atender aos diversos chamados da Natureza, livre como o pássaro que é.

Assim sendo, vistas do alto enquanto aguardamos, a céu aberto, nossa vez de atendimento no restaurante do Passeio Público, presumo que nossas cabeças enfileiradas sejam indistintas de um trecho de areia, do perfil de um muro, de um conjunto de lampiões roídos pela maresia ou pelo descuido. Minha cabeça desprotegida, por exemplo, é apenas um elemento a mais na paisagem.

Ao rés do chão, bem abaixo do pipilar da passarada à espera dos farelos, restos e migalhas que deixaremos após nossa partida, somos todos alvos imóveis, indefesos. Até sairmos, seus minúsculos sistemas digestivos mantêm-se funcionando em saudável plenitude.

Daí não me causar surpresa a sensação de algo úmido atingindo meu cabelo, bem no topo da cabeça. Já sei do que se trata. Não preciso levar às mãos ao local para calcular o desastre acontecido, nem ignorar a dificuldade que isso representa justo agora, na hora do almoço. Não tenho comigo nenhum pedaço de papel ou de pano capaz de solucionar o inesperado revés. Guardanapos, visualizados a certa distância, no salão do restaurante, apenas agravariam a situação capilar.

Permaneço imóvel. Ocupados em seus celulares, o vizinho da frente e a vizinha de trás não percebem o acontecido. O que não faz diferença para mim, equilibrando aquela intocável coroa composta de grãos, insetos e sementes, de inexorável realidade.

Saio da fila para reestruturar os planos: almoçar, ir ao Banco, sapateiro… tudo riscado da lista. Por que eu, me pergunto. Por que justamente em mim, me interrogo, se estávamos a pequena distância uns dos outros, igualmente parados no cruzamento das duas retas de um plano cartesiano, eixo das ordenadas e eixo das abcissas formando ângulo de 90 graus, vento Noroeste soprando a favor?

Mais um tantinho para trás, e o alvo seria o celular da moça que me seguia na fila. Mais um pouquinho para frente, e a vítima seria o rapaz com fixador nos cabelos, por cuja superfície o produto aviário possivelmente escorreria sem maiores danos.

Apresso o passo para o portão que dá acesso à rua, onde irei aguardar o táxi chamado agora, preocupada em enrijecer o pescoço enquanto um filete suspeitamente úmido, com poder corrosivo capaz de danificar a pintura de veículos, espicha-se rumo à nuca.

Por ser curiosa quanto ao significado de signos e sinais, estou ciente que em algumas culturas (Japão e Itália, entre outras) o fato é considerado sinal de bons augúrios, de boas notícias prontas para se despejarem sobre você. Talvez tal interpretação se deva ao poder de voo do pássaro, tido como representação de sabedoria, leveza e divindade, mensageiro alado entre o mundo celeste e nosso mundo terreno –, esse simbolizado pela serpente, capaz de muitas maldades, mas não de bombardear as nossas cabeças.

Já em casa, com os cabelos higienizados, e depois de um almoço providenciado às pressas, reflito sobre alguns pontos da experiência.

Existem aqueles sobreviventes solitários de terríveis catástrofes, que devem se perguntar aflitos, no oco da noite, como fiz mais cedo: Por que eu. Existem outros sobre quem recaem os mais improváveis e sofridos infortúnios, e que voltam os olhos à mudez dos Céus interrogando seus deuses com um penoso: Por que eu.

Inútil buscar alguma lógica em certos fatos, filosofo. Como resposta aos honestos questionamentos, estou certa de que os passarinhos posicionados nos galhos das árvores, qual notas musicais na pauta de uma partitura, pipilariam sem pena um harmonioso: Por que não você. As coisas acontecem quando têm que acontecer, e o nome disso é Acaso.

Como sabemos os mais velhos, enquanto o homem ou a mulher fazem planos, Deus ri.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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