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O olhar do abismo. Por Angela Barros Leal

Mais dia, menos dia, eu não ia ter como escapar. Mais cedo ou mais tarde, já estava ciente de que isso iria acontecer comigo, como acontece com todos. Era certo, era fato, era evidente, era o cumprimento de um desejo inexorável do imbatível Destino.

Assim, o que eu tanto temia se deu: depois de muitos meses de atividade semanal, depois tanto olhar para dentro do abismo, de tanto escavar suas entranhas, de tanto perfurar suas saliências e reentrâncias, de tanto martelar suas paredes rochosas em busca de impalpáveis tesouros, explorando seus contornos e extraindo fragmentos (ainda que tão pobres) de suas entranhas, o abismo por fim deixou a imobilidade, moveu-se sem pressa, emitiu um ronco profundo, e retornou o olhar para mim.

Não, não me refiro ao abismo filosófico de Nietsche, do qual sequer arranho a superfície, não trato do vazio da alma, muito menos de reconhecer a perda do mistério (“uma coisa explicada deixa de interessar”, assegura ele em Além do Bem e do Mal). Meu abismo é mais prosaico, menos relevante, distante sequer de roçar a bainha da ruidosa torrente de pensamentos profundos que zunem e relampejam pelas cabeças privilegiadas dos que ocupam criativamente esse nosso mundo.

É o abismo que me faz estremecer ao ser visto, tal e qual a terra sangrenta e arrasada ao final das batalhas, da qual todas os espíritos se ausentaram. De onde o único som que se eleva é o silêncio das musas. De onde os temas voaram em bandos, para fugir da esterilidade do Inverno criativo, traçando no céu o V das aves migratórias. Da desaparição absoluta de uma ideia específica a ser tratada, de uma hipótese ou tese, miúdas que sejam, sobre as quais me fosse possível discorrer. 

O abismo que me encara é aquele do esvaziamento completo da imaginação. Do sofrimento, agonia e morte da inspiração, temido por quem quer que escreva para o público umas poucas linhas. O abismo desprovido de largura, altura ou comprimento, identificado não por observatórios na Patagônia, não por satélites da NASA, mas pelos próprios olhos que passeiam, em vão, sobre a planura de uma tela de computador inteiramente em branco, na qual nada existe a ser incluído, ou a ser retirado.

Em simples e bom português, a prévia digressão sobre o abismo pode ser traduzida em três palavras: a fonte secou.

E ofereço exemplos para comprovar o esgotamento da fonte.

Inclinei-me para tratar de nomes próprios. Sobre o passar do tempo sepultando os Cunegundes, os Urcesinos, os Adamastores, as Brites, as Brígidas, as Frutuosas. O texto versaria sobre os modismos que levam às pias batismais, ou aos registros civis, ondas seguidas de crianças com denominação inspirada em personagens de novelas televisivas, de cantores populares. Nada consegui escrever sobre isso.

Ontem caminhei por uma calçada suja, quebrada, desigual, retrato concreto do descaso urbano. E de repente havia sobre ela um inesperado dossel de flores, lançando sombra e ramos por cima do muro de uma das últimas casas do bairro. Minhas sandálias maceraram pétalas perfumadas de jasmim, qual fossem os astros pisados no chão de estrelas de Silvio Caldas, porém meus dedos se quedaram, estáticos, sobre o teclado do computador.  

Anteontem li um pouco sobre nós. Entenda-se: não sobre você e eu, não sobre nosso conjunto humano, mas sobre os volteios e amarrações criados para atar materiais entre si. Soube assim que existe o nó borboleta, executado com a leveza de asas; o nó oito, ou volta do fiador, cujo entrançado resulta no símbolo do infinito; o nó volta do salteador, adequado a alpinistas e bandoleiros, servindo-se apenas de uma lateral das cordas. A mim, que só tenho mãos para o nó cego, nenhuma inspiração me veio.

E no último fim de semana parei diante da vitrine de uma loja de shopping, inclinando a cabeça de um lado a outro, tentando entender a razão pela qual uma calça jeans rasgada em cortes horizontais, com fios soltos franjando cada um deles, uma calça que qualquer um em sã consciência hesitaria antes de doar a uma pessoa em condição de rua, por medo de ofendê-la – como é que uma peça de roupa em tão lamentável estado alcança, na caixa registradora, a marca dos três dígitos. A dúvida me tirou, de vez, o ânimo para escrever.

Dito isso, o abismo reemitiu outro ronco surdo e virou para o lado, esmagando por inteiro a inspiração. Pelo que me desculpo, comunicando ter considerado mais prudente aguardar a chegada de uma nova semana.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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