Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

O massacre de Suzano e a representação da tragédia: dos gregos à Deep Web, por Leopoldo Cavalcante


Por Leopoldo Cavalcante
leopoldocavalcante@focus.jor.br

O mundo vive tragédias periódicas. Uma pesquisa quantitativa do fenômeno é desnecessária. Qualquer jornal, desde que o jornalismo é jornalismo, narra uma quantidade que dispensa apresentações. Difícil não ler diariamente sobre um avião caído, uma bomba explodida numa cidade africana, um barco afundado, uma criança trucidada, uma chacina numa escola, uma região inundada, um assassinato brutal etc. e et cetera. Justamente por isso, faço uma breve reflexão sobre o significado do trágico.
Vou voltar um pouco no tempo para falar de Aristóteles. Em sua Poética, Aristóteles teoriza que a tragédia é uma arte mimética de caráter elevado, ou seja, uma imitação de algo utilizando um padrão que suscita o terror e a piedade, resultando numa purificação (catarse). É uma boa teoria para obras teatrais e artísticas em geral, falhando com o sentido do trágico no mundo real. Ou será que não?
Jean Baudrillard defende, em seu Simulacros e Simulações a tese de que vivemos num mundo no qual as mídias criam simulacros toscos da realidade que, não obstante, carregam um peso simbólico mais impactante do que a própria realidade. Baudrillard argumentaria, por exemplo, que um bombardeio no Afeganistão só existe quando a televisão mostra imagens da bomba caindo. A tese tem um tanto de verdade. Se uma árvore cair na floresta e ninguém ver, terá a árvore caído? O francês questionaria a própria existência da árvore caída, porque ninguém falou – ou televisionou – sobre a árvore.
As críticas mais ferozes ao Baudrillard viriam, por exemplo, dos afegãos que foram bombardeados. Diferente de uma árvore, no final do dia, quem perdeu a casa e, no pior dos casos, a família foram eles. É inevitável conjecturar que a teoria do Baudrillard está presa numa visão provinciana: eu, francês (ou melhor, parisiense), só acredito no mundo que chega até aqui, Paris. O resto, portanto, não existe. Debater sobre os vários limites provincianos das teorias francesas renderia uma coluna muito maior do que pretendo. Paro por aqui, tomando a teoria do Simulacro com as devidas ressalvas.
Digamos, portanto, que o mundo tenha que ser transmitido para adquirir valor simbólico e, desta forma, ter impacto na sociedade, como fazê-lo para evitar a teatralização do real? Essa inquietação me veio de uma matéria em específico: a comemoração do atentado em Suzano (SP) em um fórum na internet.
Em resumo, na Deep Web, uma região de difícil acesso para o internauta médio, um fórum chamado Dogolochan fez dos assassinos heróis. Nessas regiões obscuras da Internet não é incomum louvar protagonistas percussores de tragédias. Oito anos atrás eu frequentava outros chans “leves” em busca de materiais de pesquisa (algumas subseções têm um acervo impressionante e discussões de alto nível sobre assuntos relevantes) e já me deparava com o padrão de elogiar pedófilos e suicidas. Até para quem era apenas um observador passivo, os efeitos dessas postagens podiam ser nocivos e carregar mazelas por um bom tempo.
Mas qual a ligação entre o fórum obscuro, Aristóteles, Baudrillard e a representação da tragédia? Bem, para responder a essa pergunta, preciso esmiuçar o significado da palavra “protagonista”. O ensaísta e filósofo espanhol (praticamente ignorado no Brasil) Miguel de Unamuno em seu livro A agonia no Cristianismo retoma a raiz da palavra agonia. Agônico é aquele que está lutando, que está em eterno conflito. Protagonista (proto-agonista) é o agônico em destaque, o que tem a sua luta exposta e em primeiro plano. O valor moral do protagonista é pouco relevante. Não importa se ele bom ou ruim, o importante é a sua representação e seu lugar na narração da agonia. Dito isto, podemos voltar para Aristóteles.
Quando o grego fala em tragédia, ele está pensando em dramas trágicos como Édipo Tirano. Relembrando a história: uma peste assola a cidade de Tebas. O rei Édipo precisa saber como resolver e consulta o oraculo de Delfos. Este lhe diz, depois de muito relutar, que o culpado pela peste é Édipo, parricida e incestuoso. Édipo, agônico por tomar conhecimento do significado dos seus atos até aquele momento, fura os próprios olhos e foge de Tebas. Para o protagonista, nada acaba bem. É desastre atrás de desastre. Para a plateia – e à cidade de Tebas –, no entanto, a queda de Édipo representa o sacrifício em prol de algo maior. Um herói atormentado pelo destino mostrando resiliência espiritual no próprio sacrifício, elevando-se moralmente.
Utilizando da frieza analítica disponível pelo ensaio filosófico (se é que este artigo é um ensaio ou ainda filosófico), quero estender a interpretação trágica às representações simbólicas dos assassinos nas chacinas em escolas. Existe, por mais que me seja moralmente tentador dizer que não, uma coerência no comportamento de louvar os assassinos dentro dos fóruns. Por partes.
Peguemos o conceito de agonia para Unamuno para ter como base a constatação de que, sim, os assassinos são seres agônicos. Todos, seja no Brasil ou nos EUA, passavam por problemas pessoais, desde bullying escolar até rejeições amorosas constantes (formando o grupo dos Incels). O foco, nesses casos, não é o drama trágico social, no sentido amplo da palavra, mas a tragédia interior, psicológica, que é amplificado pelo convívio virtual, nos fóruns, com pessoas semelhantes. Há anos, não é possível clivar totalmente o “mundo real” do “mundo virtual”, estamos cada vez mais interligados pelas tecnologias, mas vou separá-los para efeito argumentativo. As consequências do mundo real, como as agressões dos colegas e a dificuldade de formar laços afetivos, juntam-se com a ética distorcida dos ambientes de chans formando indivíduos pouco afeitos às boas condutas e ao mundo que ele tanto abomina. Os protagonistas desse submundo vivem sob uma estética própria, levando-os à catarse quando algum dos seus – ou de comportamento similar – realiza um ato perverso que tem repercussão. E é justamente nesse último ponto que eu quero finalizar.
As mídias têm o papel fundamental de ser a ponte entre o real e a aparência-do-real. O modo como ela o faz tem uma importância debatida à exaustão. Por ter o poder de fomentar simulacros do real, é preciso um cuidado ao tratar de assuntos trágicos – em especial os que envolvem participação ativa do homem, como assassinatos e chacinas. A cada tiroteio em escolas, temos mais e mais conhecimento do que pode ou não pode ser feito na representação da tragédia. Alguns erros são cometidos pelo dinamismo próprio ao jornalismo, mas, independente das dificuldades, não devemos saciar a sede sádica deles por “heróis trágicos”. Como dizia um compositor baiano: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E completo: se você só sabe a dor, procure ajuda profissional.


Leopoldo Cavalcante, cearense de Fortaleza, é criador/autor do @resenhador e articulista de cultura do Focus. Estuda Jornalismo na Cásper Líbero (SP) e Direito no Largo São Francisco (USP).
 

Mais notícias