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O leviatã e o paraíso, por Rui Martinho

Rui Martinho é professor da UFC, advogado, bacharel em administração, mestre em sociologia e doutor em história. Com 6 livros publicados e vários artigos acadêmicos na área de história, educação e política. Assina coluna semanal no Focus.jor.

O sufrágio censitário exigia renda e outros requisitos para a capacidade eleitoral ativa, desigualdade nada republicana. O voto universal reconhece o direito de votar sem distinção de renda, escolaridade ou etnia, conquistado no século XIX, inicialmente restrito ao universo masculino. É um importante aperfeiçoamento democrático; fortaleceu a legitimidade da representação política; ampliou o papel do Estado na promoção do bem-estar social.
Educação, saúde, previdência, seguro desemprego, programas de renda mínima ganharam impulso. Bens e serviços popularizaram-se. Indicadores de qualidade de vida cresceram tanto que o discurso sobre “consumismo” eclipsou a teoria da pauperização (Karl Heirinch Marx, 1818 – 1883). A discussão da pobreza objetiva, descrita com números absolutos, cedeu lugar ao debate sobre pobreza comparada (desigualdade).
Democracia e lutas por direitos, fortalecidas pelo voto universal, assumiram a paternidade exclusiva das conquistas citadas. Ganhos de produtividade relacionados com as modernas técnicas de administração e avanços tecnológicos foram excluídos das causa da melhoria da condição de vida apontados pelos indicadores estatísticos. O voluntarismo e o fetichismo da norma tornaram-se dominantes. As lutas políticas promoveriam a eunomia (eu= bem, felicidade; nomus= lei, regra), que asseguraria o bem-estar.
A constituição poderia tornarmos todos imortais, não fosse a reserva do possível. O acréscimo de renda, vida, escolaridade, acesso aos bens e serviços são recuos da reserva aludida, proporcionados pelos ganhos e produtividade obtidos pela tecnologia. Não basta uma norma decretar o bem-estar. Mas pode-se redarguir lembrando que conquistas tecnológicas, nas experiências do socialismo real, não trouxeram acesso aos bens e ao conforto. Por outro lado, tentativas de proporcionar bem-estar sem aumento de produtividade, valendo-se do voluntarismo das lutas políticas fracassam. Não têm sustentabilidade. O Estado provedor da Europa ocidental foi permitido pelos avanços de produtividade. Mas começa a claudicar. O endividamento dos ricos estados europeus chegou ao limite. A necessidade de retroceder, porém, encontra feroz resistência, a exemplo dos coletes amarelos na França. A dinâmica demográfica, o custo crescente das tecnologias da área da saúde e o crescimento infinito das aspirações incorporadas ao entendimento do que seja bem-estar estão inviabilizando o Estado provedor.
Indiferenciar direitos potestativos e sinalagmáticos é ilusão. Os primeiros não são créditos, apenas não podem ser contestados. Os segundos são liames entre credor e devedor, têm exigibilidade. A parte devedora seria a sociedade. Mas a reserva do possível atrapalha. O resultado é a revolta que explode em manifestações no mundo inteiro.
O distributivismo é o arrimo da exigibilidade do bem-estar. Mas nem tudo é concentrado para poder ser distribuído. Exemplo: ninguém toma duzentos litros de leite por dia. Subjacente ao distributivismo está a confusão entre diferença e desigualdade, indiferenciando igualdade ontológica e a fenomênica que é apenas acidental. É preciso investir no aumento da produtividade e da produção. O distributivismo aumenta a propensão ao consumo, restringindo a propensão a poupar e o investimento. Consumo sem renda e investimento sem poupança é o “milagre” da dívida.
O voluntarismo e a norma são impotentes diante da realidade. Gastos assistenciais são contrários ao espírito de ascese necessário ao equilíbrio financeiro. A deusa Bem-Aventurança promete colheita sem plantio. A Virtude, deusa austera, promete desfrute a quem semear (Gustav Schwab, 1792 – 1850). Os asiáticos não se iludiram e estão suplantando o ocidente.

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