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O discurso presidencial e a prestação de contas à sociedade

Raquel Cavalcanti Ramos Machado: advogada e professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará. Chefe do Departamento de Direito Público da FD-UFC. Professora-Orientadora do Grupo Ágora (UFC).  

Matheus Andrade Braga: advogado, pós-graduado em Compliance. Presidente da Comissão de Estudos em Direito Penal da OAB/CE.

Na última sexta-feira, dia 24.04.2020, já preocupados com os problemas decorrentes da propagação do vírus no país, e com os dramas governamentais ante a saída do Ministro da Saúde, os brasileiros foram surpreendidos com a exposição de graves questões dos bastidores do Governo Federal, no pronunciamento de Sérgio Moro, e, após, no discurso realizado pelo Presidente da República, em resposta ao ex-Ministro da Justiça.

O Presidente mantém defensores, mas mesmo alguns apoiadores responsáveis por sua eleição parecem já decepcionados. Sua manifestação em cadeia nacional, que deveria ter saciado dúvidas quanto a acusações institucionais apresentadas por Sergio Mouro, foi como um golpe final no desmoronamento de sua imagem. Muitas foram as críticas publicadas nas mais variadas redes sociais contra o discurso presidencial.

Apartidárias em sua grande maioria, as observações tecidas em torno do pronunciamento do Presidente dão conta, principalmente i) da superficialidade, da deselegância e da obliquidade da fala presidencial, que tomou a atenção do povo brasileiro por mais de 40 (quarenta) minutos; ii) das graves alegações relacionadas à pessoa do ex-ministro Sérgio Moro (especialmente, no que diz respeito à acusação de que o ex-ministro teria se valido de uma chantagem, em torno da iminente modificação na chefia da Polícia Federal, a troco de um assento no Supremo Tribunal Federal); e iii) da ausência de justificativa plausível para a exoneração do Sr. Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal.

Dentre as críticas acima suscitadas – todas providas de fundamento, deve-se admitir – sobreleva-se a falta de explicação, por parte do Presidente da República, acerca do (real) motivo para a troca da chefia da Polícia Federal, fato que teria ensejado a saída de Sérgio Moro da cúpula do Governo Federal.

Hierarquicamente, é estranho que o presidente esteja envolvido com a questão. Decorre do poder hierárquico as ideias de ordem, coordenação, fiscalização, controle e correção. Por conta da coordenação e da presunção de confiança entre chefe e subordinado, geralmente, as ordens se dão entre autoridades de níveis imediatamente diferentes e não separadas por escalas. Se o presidente não confiava no Ministro, deveria tê-lo exonerado antes, e não ter realizado a manobra que fez, contra o entendimento do próprio ministro.

De todo modo, apesar de hipoteticamente existir essa relação de subordinação entre presidência, Ministério da Justiça e Polícia, diante do fato de que estamos em um Estado de Direito, e de que mesmo o presidente e todos de sua relação estão sujeitos à lei e às sanções por ela impostas, assim como estão sujeitos à investigação, é importante que haja uma certa independência entre os órgãos, no limite de suas atribuições legais. Ou seja, a Polícia Federal não está à mercê do presidente, ou de qualquer autoridade que seja, para investigar ou deixar de investigar fatos de acordo interesses pessoais. Trata-se da persecução do interesse público e da busca da verdade, além de qualquer interesse íntimo e acima de qualquer autoridade.

É certo que as exonerações de cargo em comissão não carecem de fundamentação, mas, novamente, considerando que estamos em um Estado de Direito, na verdade, em um Estado Democrático de Direito, e considerando ainda a fragilidade do cenário político atual e as suspeitas que pairam sobre o presidente e sua família, a  ausência de justificação razoável para o povo brasileiro pode indicar uma verdadeira confissão da intenção do Presidente de interferir na Polícia Federal, além de representar seu desprezo pela transparência nas suas escolhas e decisões políticas.

Com a exoneração do Sr. Maurício Valeixo do cargo de chefia da Polícia Federal, pôs-se em discussão se haveria ou não a intenção de interferência por parte do Presidente da República nas atividades investigativas desenvolvidas pelo órgão, fato que, se confirmado, seria grave do ponto de vista democrático. Na manifestação presidencial, nada obstante, só foram prestadas declarações rasas e evasivas a respeito do ocorrido, não raramente associadas a um discurso de autoridade.

A bem da verdade, não é novidade que o Presidente Jair Bolsonaro não tem reserva e/ou constrangimento em expor argumentos de autoridade, do estilo “eu não tenho que pedir autorização de ninguém para trocar o diretor ou qualquer outro que esteja na pirâmide hierárquica do poder executivo” ou “a indicação é minha; é prerrogativa minha, e no dia que eu tiver que submeter a qualquer um subordinado meu eu deixo de ser presidente da república” (trechos do discurso presidencial proferido no dia 24.04.2020), pelo que aparenta ter uma visão um tanto deturpada da função exercida por um chefe de um Estado que se diz ser Democrático e de Direito, em que os deveres de transparência, de prestação de contas e de motivação dos atos públicos são indisponíveis.

Além da previsão de inúmeros deveres e atribuições aos ocupantes de cargos públicos, no sentido de conferir mais transparência a seus atos, o texto da Constituição Federal de 1988 fortalece, significativamente, o papel das instituições de controle e de fiscalização, bem como estabelece instrumentos de participação popular, a fim de viabilizar a supervisão dos atos dos representantes públicos pelos cidadãos. A lógica estabelecida, aqui, é a de que, de um lado, haja responsabilidade dos atores políticos e, de outro, seja viabilizado o exercício das atividades de supervisão e controle dos atos públicos (accountability).

As decisões e as escolhas políticas do Presidente da República, por evidente, têm repercussão na vida de cada um de nós brasileiros, pelo que devem ser tomadas com a responsabilidade inerente ao cargo de máxima chefia do Governo Federal, sempre em atenção ao interesse público. Ademais, não seria muito esperar de um Presidente da República o estabelecimento de um diálogo com a população, em que se assenta a mínima transparência no que diz respeito à justificação de suas decisões e escolhas políticas, pois não?

Todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes eleitos. Eis o que dispõe o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal. No âmbito do procedimento democrático, portanto, a publicidade e a transparência das escolhas políticas, bem como das razões que a justificam, são imprescindíveis, a fim de demonstrar o verdadeiro comprometimento dos representantes eleitos com o interesse público, o que implica, em última análise, no reconhecimento da própria legitimidade das decisões políticas.

Já não há mais espaço, no ambiente político brasileiro, para a manutenção de representantes que não dão satisfação, aos eleitores, de suas decisões, ações e escolhas que têm potencial impacto na vida dos cidadãos.

No cenário atual, nunca foi tão importante a independência das instituições de fiscalização e do Poder Judiciário. Também nunca foi tão importante o papel do cidadão no controle dos atos protagonizados pelos agentes políticos brasileiros (seja por meio de instrumentos de participação popular direta, ou mesmo através de seus representantes parlamentares, em todos os níveis federativos). E sim, nunca foi tão importante o trabalho de uma imprensa independente. E em tempos de pandemia, tudo isso é ainda mais evidente.

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