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O dilema da transformação financeira digital, por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial, internacional, contratos, negociações e soluções de conflitos. É mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com. Escreve semanalmente no Focus

Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

De herói a vilão, a transformação financeira digital é amplamente discutida. Tal como vivamente exemplificado durante a crise financeira global de 2008, sabemos que os bancos são vulneráveis ​​às operações desestabilizadoras. Em teoria, essa vulnerabilidade mina severamente a credibilidade das promessas que bancos fazem aos detentores de seus passivos monetários. Então, por que confiamos aos bancos a grande maioria do nosso suado dinheiro? A resposta está profundamente enraizada no tratamento jurídico exclusivo e altamente sofisticado dessas instituições.

Por exemplo, o Federal Reserve System – o banco central da América – está autorizado a conceder empréstimos de emergência e outras formas de assistência aos bancos em dificuldades financeiras. Os bancos e seus depositantes também se beneficiam de um esquema de garantia administrado pela Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), juntamente com um regime especial de falência projetado para garantir que os bancos possam continuar a honrar suas promessas aos depositantes, mesmo em caso de falha.

Em troca desses privilégios, os bancos estão sujeitos às regulamentações e supervisões projetadas para minimizar a probabilidade de sua falha e seu potencial impacto nos credores e no sistema financeiro como um todo. Essa estrutura regulatória transforma, portanto, os depósitos bancários arriscados no que é frequentemente descrito como ativos “seguros”. Em termos mais prosaicos, a regulamentação bancária derivada do direito econômico é o motivo pelo qual pensamos nos depósitos bancários como sendo fundamentalmente “good money”.

Isso não sugere que os marcos regulatórios que governam bancos sejam de alguma forma perfeitos. Longe disso. A crise financeira global de 2008 reacendeu, com razão, importantes debates sobre o design ideal dessas estruturas e suas regulamentações. No entanto, essas estruturas regulatórias desempenham um papel central no reforço da credibilidade dos compromissos monetários dessas instituições, especialmente em estados voláteis e incertos, onde outros tipos de empresas certamente entrariam em colapso rapidamente.

Apesar dessa credibilidade, um dos desenvolvimentos mais notáveis ​​nas finanças na última década foi o surgimento e a proliferação de empresas que buscam emitir passivos monetários digitais e fora do perímetro do sistema bancário convencional.

Embora exista uma heterogeneidade significativa nesse ecossistema financeiro em rápida evolução, dois novos modelos monetários apresentam maior grau de importância. O primeiro consiste em plataformas proprietárias de pagamento ponto a ponto (P2P) que facilitam pagamentos entre indivíduos, famílias, empresas e governo.  O segundo consiste em empresas que emitem um tipo específico de criptomoeda – as chamadas “stablecoins” – que pretendem ancorar seu valor a uma moeda de referência externa, como o dólar americano. Atualmente, essas instituições são apoiadas por todos, do JP Morgan (JPM Coin) aos rap stars.

Para os clientes, essas plataformas oferecem duas vantagens distintas. Primeiro, ao contrário do sistema convencional de pagamento bancário, os pagadores podem iniciar uma transferência usando um aplicativo ou site seguro, sem precisar fornecer informações financeiras confidenciais ao beneficiário. Segundo, especialmente para clientes de média e baixa renda, assim como pequenas empresas, essas plataformas são muito menos caras do que os serviços bancários comerciais convencionais. Por esses motivos, as plataformas proprietárias de pagamento P2P geralmente são vistas como uma maneira relativamente rápida, fácil, segura e acessível de efetuar e receber pagamentos.

Nesses aspectos importantes, os saldos positivos mantidos nas contas de clientes do PayPal são essencialmente indistinguíveis dos depósitos mantidos em bancos comerciais. Fundamentalmente, no entanto, o PayPal não possui uma licença bancária nos EUA. Esses saldos também não são protegidos pelo seguro de depósito do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC).

Em teoria, essa combinação de funções de pagamento e custódia introduz o risco de que, no caso de falência de uma plataforma, a aplicação da suspensão automática impediria o acesso do cliente ao seu dinheiro durante o processo de falência.  É louvável que o Contrato de usuário dos EUA no PayPal deixe isso bem claro: declarando explicitamente que os fundos do cliente representam uma reivindicação não segura contra a empresa e não são protegidos pelo seguro de depósito do FDIC. No entanto, o simples fato de o PayPal se sentir compelido a divulgar essas informações serve para destacar o fato que essas plataformas estão sendo cada vez mais vistas como substitutas de contas bancárias convencionais.

Enquanto o PayPal e outras plataformas de pagamento P2P entraram claramente no mainstream financeiro, outra nova geração de instituições monetárias apareceu recentemente no horizonte. Essas instituições aspiram a emitir um tipo específico de criptomoeda conhecido como stablecoin. Em poucas palavras, stablecoins são instrumentos financeiros cujo valor está atrelado contratualmente ao valor de outra moeda. Assim, uma unidade de qualquer stablecoin deve valer uma unidade (por exemplo, dólar, libra, iene) da moeda subjacente.

De longe, o stablecoin proposto mais destacado é o Libra do FaceBook. Em 2019, o Facebook anunciou que estava liderando um consórcio para estabelecer a Libra, que seria uma nova criptomoeda a ser criada e operada por meio de um novo sistema global de pagamentos eletrônicos, combinado com uma infraestrutura de identificação digital liderada pelo Facebook. Efetivamente, o Facebook visa criar um novo sistema de pagamento eletrônico para seu ecossistema de aplicativos de mídia social com base em um novo instrumento de pagamento vinculado a conjuntos de moedas fiduciárias (uma “stablecoin”), permitindo monetizar as interações de seus 3,5 bilhões de usuários globalmente, particularmente nos países em desenvolvimento que não possuem tipos semelhantes de infraestrutura.

O Facebook já exerce um tremendo controle sobre o que fazemos online, mas Libra daria à gigante da mídia social um controle sobre o próprio dinheiro – uma proposta muito mais séria. Esse sistema pode adicionar maior eficiência, mas também adicionaria uma maior concentração de poder em mãos que podem ser irresponsáveis. Devemos perguntar: realmente confiamos no Facebook para usar esse poder com responsabilidade? Esses usuários assumem a maior parte dos riscos e danos se as coisas derem errado com a Libra.

Esta proposta do Facebook destaca muitas das principais áreas de preocupação levantadas pela transformação financeira digital: E se a Libra for invadida e destruída? (risco de segurança cibernética); E se o Facebook usar os dados adquiridos para seus próprios fins? (proteção de dados e risco de privacidade); E se os dados do usuário forem roubados? (risco de segurança de dados); E se o Facebook dominar o mercado internacional de sistema financeiro como resultado de Libra? (novo risco de instituição financeira sistemicamente importante); E se Libra se tornar a forma internacional dominante de dinheiro? (risco de infraestrutura tecnológica, ameaças à concorrência).

O futuro parece obscuro para Libra. Em outubro do ano passado, Zuckerberg foi até o Congresso americano, em uma audiência realizada pelo Comitê de Serviços Financeiros da Câmara, e tentou convencer o governo daquele país que a sua criptomoeda era uma boa ideia. Não deu certo. Mantiveram-se os temores de que a iniciativa pudesse ameaçar a privacidade das pessoas, ao mesmo tempo em que prejudicaria a segurança nacional dos EUA ao servir de ferramenta para que criminosos movimentem dinheiro. Também no final de 2019, os ministros das finanças da União Europeia concordaram em bloquear a Libra até desenvolverem uma maneira compartilhada de regulamentá-lo. Ciente de toda a repercussão internacional, recentemente Zuckerberg deu uma guinada em seus planos, como forma de agradar aos reguladores para enfim por seu serviço financeiro no mercado.

Por mais desagradáveis ​​que sejam nossos bancos, geralmente podemos confiar que eles não vão “fugir” com o dinheiro que depositamos. Nesse contexto, a perspectiva de poder comprar coisas dos influenciadores do Instagram com mais facilidade, em troca do Facebook ter ainda mais dados para potencial uso indevido, não parece atraente.

Mas afinal, tudo isso faz com que consideremos a transformação financeira digital como sendo “bad money”?

Não exatamente. Com ou sem o envolvimento do Facebook, esses novos sistemas podem significar muito para quem não tem um lugar seguro para guardar dinheiro e sem dúvidas podem democratizar o acesso às finanças. Considere o caso de M-Pesa no Quênia. M-Pesa é um serviço de dinheiro móvel oferecido pela Safaricom, uma afiliada da Vodafone. Não é uma criptomoeda, mas um serviço que permite armazenar, enviar ou receber xelins quenianos (ou várias outras moedas fiduciárias). Dois anos após o lançamento da M-Pesa em 2007, mais de 65% dos quenianos haviam recebido dinheiro através do serviço.

Em todo o mundo, as contas bancárias raramente são oferecidas gratuitamente a pessoas que não podem fazer grandes depósitos. Os economistas Tavneet Suri e William Jack estimaram na revista Science que M-Pesa tirou 194.000 quenianos da pobreza extrema, em grande parte facilitando muito a acumulação de economias pelos quenianos. Se uma stablecoin, juntamente com uma carteira fácil de usar, pudesse replicar alguns dos benefícios que os usuários de M-Pesa têm no Quênia, isso poderia causar um pequeno, mas importante abalo na pobreza global.

Como os reguladores devem responder a essa nova realidade? Terceirizar algo tão importante quanto a criação de dinheiro para instituições financeiras privadas, pelo menos atualmente, pode ser um negócio inerentemente arriscado?

Uma opção é simplesmente “desligá-lo”: tornar ilegal a emissão de dinheiro fora do sistema bancário regulamentado e, assim, forçar essas novas instituições monetárias a obter licenças bancárias convencionais. No entanto, embora essa opção possua algum apelo intuitivo, apresenta uma série de desafios legais e práticos. Como vimos, a transformação digital possui vários aspectos positivos, principalmente em mercados em desenvolvimento. Simplesmente banir essas instituições também prejudicaria a concorrência e a inovação em um setor já caracterizado por barreiras significativas à entrada.

Mas há limites para essa transformação financeira ou vale tudo quando o assunto é inovação?

As deficiências no sistema regulatório em relação aos riscos globais de tecnologia são indiscutíveis. Atualmente não possuímos um arcabouço jurídico que dê segurança aos novos modelos de transações digitais.  No caso de bancos, a lei faz um grande esforço para transformar seus passivos monetários em boa moeda, porém, no caso de plataformas proprietárias de pagamento P2P, emissores de stablecoin e outras instituições monetárias aspirantes, as estruturas reguladoras antiquadas, fragmentadas e heterogêneas fazem muito, muito menos para apoiar a credibilidade de seus compromissos.

Esse estado representa perigos significativos para os clientes dessas novas instituições monetárias. Com o tempo, também pode minar a integridade e a estabilidade de um sistema financeiro mais amplo. Juntos, esses perigos fornecem uma justificativa convincente para a adoção de uma nova abordagem à regulamentação do dinheiro privado: uma que fortaleça e harmonize as estruturas regulatórias que governam as instituições monetárias e apoie o desenvolvimento de um campo de jogo competitivo mais nivelado.

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