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Nosso círculo de giz caucasiano. Por Paulo Elpídio

“Uma das maiores lições das minhas experiências é que o retorno à barbárie é sempre possível. Nenhuma conquista histórica é irreversível”, Edgar Morin, “Leçons d’un siècle de vie”, Denoel, Paris, 2021

Presidente Jair Bolsonaro, discursa durante lançamento do novo sistema nacional de recadastramento de pescadores profissionais. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Bolsonaro nem é mito, nem fenômeno. Como Lula e Collor, foi um espasmo eleitoral, a reação emocional de uma massa de carecida consciência política, recolhida aos seus temores e vagas aspirações.

Em 1964, senhoras mães de família e os cidadãos bem nascidos tementes dos desmandos dos homens, saíram em defesa da família e de Deus pelo Aterro do Flamengo, em adesão a uma revolução que não se completaria nos vinte e cinco anos da sua longeva missão salvacionista. Qualificá-la como “revolução” excede os limites conceituais do que seja, de fato, um movimento com tais características. Para uma revolução faltavam ideia e povo.

Na América Latina, habituamo-nos com visível resignação à repetição cíclica de intervenções armadas, geralmente apoiadas pelas instâncias militares, em uma associação íntima, cúmplice e incestuosa, entre grupos políticos e as velhas oligarquias, sobreviventes na contemporaneidade de países periféricos, dominados pela sua vocação totalitária ancestral. Esse tipo de assédio ao poder, provido democraticamente  ou não, instituído pelo voto ou imposto pela armas, consolida-se, no poder, como uma forma inusitada de administração sem Estado, de governo sem povo, com arrimo em leis brotadas da usinagem extra-legislativa ou no seio de práticas parlamentares, de índole autoritária. Os romanos chamariam a esse arremedo institucional de tirania, tiranos, os detentores transitórios do poder que, a seu tempo, seriam derrubados  por outros condottieres.

Eventos dessa natureza, com o povo nas ruas e os políticos a manipular a sua boa fé, ocorreram com mais frequência no passado do que poderíamos supor. É prática comum, persistente, por estes dias. No Brasil, esses fenômenos foram menos frequentes do que no resto da América Latina, mas a eles não fomes imunes. A independência foi arrancada contra a vontade das Cortes portuguesas, apesar da vontade relutante do Imperador, graças a alguns atores iluminados, considerando que povo, à época, não existia.  A República nasceu de um golpe preguiçoso, a desoras, pela proclamação solitária de um velho marechal e de um Imperador cansado de tanto poder inútil.

Bolsonaro enfrenta e afronta a esquerda com as mesmas armas totalitárias que ela costuma usar. À falta de partido e de uma militância bem formada, invoca o nome de Deus em vão, dobra-se a alianças despreparadas, aceita a adesão de “freelancers” pentecostalistas, saídos de um fundamentalismo grosseiro. Convocou militares de elevadas parentes, desservidos de experiência politica, para postos vitais na hierarquia do poder do Estado. Faltou-lhe um projeto de governo, e saber o quê fazer e porquê. As obras retomadas, as sobras de dispêndios descontrolados de desgovernos anteriores, seguem um cronograma pelo varejo de intuições mal costuradas. Reunidos voluntários “snipers políticos” da direita, lançou-se, como se fora um cruzado moderno, ao combate de uma campanha   iluminada em defesa de ideais vagos,  em torno dos quais reuniram-se muitos oportunistas.

Diz-se que a guerra é a diplomacia desenvolvida por outros meios, mais convincentes… Seguimos, nestes dois anos, por essas vias perigosas. Exercitamo-nos na busca de um inimigo interno e de ameaças externas contra as quais os vingadores das nossas virtudes ancestrais  pudessem brandir as suas armas. Nada, entretanto, que não houvesse sido feito antes, nos prélios eleitorais de uma democracia engasgada com tantos recuos e hesitações republicanas; ou diante de  inclinações totalitárias mal contidas, materializadas em alguns episódios canhestros da nossa história, muitos deles consagrados em lances desconhecidos, ainda que verdadeiros,  de destemor e heroicidade. A sublevação de forças isoladas no nordeste, em 1814, 1817 e 1824 marcaram, ainda que delas sejam vagas e raras as notícias que nos chegaram,  a reação mais viva e combativa contra a resistência da dominação portuguesa no Brasil.

Em dois séculos desses feitos e desfeitos, foram poucos e débeis os avanços alcançados na consolidação da República, no Brasil, e de uma hesitante democracia, mergulhada, no intercurso de repetidas rupturas constitucionais.  Em 1930, com o advento do Estado Novo, durante quinze anos. Em 1964, o cerco militar do Estado por um movimento anunciado como ação preventiva, que custaria vinte e um anos da vida efêmera de um frágil sistema democrático de governo, mais uma vez posto sob a mira de novos atores, em defesa da democracia, contra o comunismo. No decurso de 36 anos (1930/46 e 1964/85), toda a ação política e de governo obedeceu, no Brasil, a uma estratégia convergente: o combate ao comunismo. Aparentemente, os resultados de tanta guerra e tanta persuasão mostram-se inúteis, consideradas as circunstâncias com as quais nos defrontamos, pois não é outra a cruzada armada por Bolsonaro sob a inspiração dos seus  inspiradores mais lúcidos.

O longo período da socialdemocracia uspeana (governo FHC), seguido pelos governos populares-trabalhistas e dos movimentos sociais, nascidos em São Bernardo do Campo (governos Lula e Dilma), ampliaram antigas divergências e aprofundaram as suspeitas de que, retomávamos o caminho de uma nova esquerda, moldada em um certo bolivarianismo-lulista. A evicção democrática, inesperada, do partido dos trabalhadores e de suas alianças do poder, pelas eleições de 2019, abriu uma ruptura que a muitos surpreendeu, até mesmo aos vitoriosos. Defrontamo-nos, a partir desse evento inesperado, com a divisão das forças politicas mais representativas e das suas alianças, de origem ideológica ou pelas motivações  circunstanciais que fazem a política, em formações aguerridas e inconciliáveis.

As esquerdas (coletivo um tanto vago e impreciso) jamais aceitaram a eleição de Bolsonaro.  O Brasil lhes pertencia por direito e usucapião adquiridos em três eleições consecutivas. Como um capitãozinho ejetado das suas armas poderia sobrepor-se à consciência política da nação que eles encarnavam e dela se haviam apropriado, servidos pela sede ávida dos seus coletivos guerreiros? Terá tido Bolsonaro tanta força e influência, a ponto de promover, nos campos inimigos, o alvoroço que se instalou nos vazios institucionais ? O que querem, afinal, a esquerda e os seus penduricalhos de ocasião? Esvaziar a sede gestatória do Palácio do Planalto e enfiar no lugar, “mani legalis” ou “manu militari” um Lula anacrônico, arremedo do que foi um dia nos sindicatos paulistas? A liderança imbatível de outrora sucumbiu, esmagada pela própria folha corrida, o que não significa que, por força de embargos salvadores, não possa redimir-se em face da lei e dos intermináveis recursos que a heurística oferece aos intérpretes da lei.

O que torna de Bolsonaro fonte de maus presságios para os beneficiários contumazes das indulgências do poder não é o que o presidente faz ou deixa de fazer, as decisões que adota, mas a agenda anunciada, a exposição incômoda a que submete os que o combatem e ameaçam. Entre ação e provocação, o presidente pende para o lance midiático da intimidação. Recorre o capitão reformado a estratégias poucos usuais no plano da ação militar: anuncia decisões improváveis de serem adotadas, cede a impulsos ocasionais de intemperança verbal, designa interlocutores ineptos como conselheiros sobre questões vitais de governo, expõe o flanco defendido por estrategistas militares a riscos imponderados e compromete a sua respeitabilidade com missões subalternas que estão eticamente bem distantes das suas atribuições como agentes do Estado.

Imbuído da missão que o destino lhe reservou, por inspiração divina, esquece o presidente a rotina terrestre dos desafios cotidianos, o significado das engrenagens republicanas de um governo democrático e negligencia o mecanismo das relações de poder, no âmbito do governo, cujas características são eminentemente políticas.

O problema assume contornos mais complexos e por vezes indistintos quando a complexidade dessas relações, desenvolvidas no centro do poder exercido pela autoridade fogem à percepção dos seus atores. A limitada provisão de consciência politica entre políticos e agentes do governo, parlamentares, agentes da segurança do Estado e distinguidas personalidades das instâncias judiciárias e do amplo leque da magistratura confunde direitos e obrigações, responsabilidades funcionais e privilégios —  e promove promiscuidade inaceitável entre atores públicos e privados. Tudo se passa como se nada de anormal representassem esses desvios de conduta, dissimulados na intimidade das relações conspícuas de interesses de grupos políticos influentes. A intimidade incestuosa entre interesses públicos e privados põe a nu lealdades insuspeitadas. A mídia, a exemplo de empresas de ponta e de empreendimentos financeiros e o mecanismo auspicioso da renúncia fiscal  favorecem relações privilegiadas entre a fazenda pública e o patrimônio privado.

Os políticos que não receberam as comissões esperadas por excepcionais serviços prestados ou por omissão conveniente não se contentam com as migalhas restantes. A mídia, cujas fontes de financiamento secaram, e o indulto de dívidas acumuladas não vieram como esperado, não perdoa, nem mede palavras na manifestação dos seus ressentimentos e das suas perdas. O que hão de fazer os  velhos e assíduos inquilinos do Estado, em face de golpes tão profundos e solertes?

Resulta de toda essa atribulada desordem, em um plano no qual sempre houve entendimento entre governo e oposição, o dissenso e a quebra de mútuo respeito e consentimento. A contraprestação de favores e indulgências que atenderam, sempre, a uma pauta interminável de demandas, foram, assim, postas sob suspeita. Razões de ordem política e ideológica foram usadas, nesse imbróglio de causas dissimuladas,  para caracterizar a má índole do governo, o vezo totalitário dos seus atos e palavras e  os traços de inclinações fascistas que a todos assusta.

Será que toda essa lambança arengueira foi tecida pelo capricho de uma pessoa, reconhecidamente despreparada para a missão que se impôs? E pelo caos, no qual buscamos encontrar a razão essencial do desmoronar das nossas instituições, a quem atribuir as suas causas ?

A desagregação da cadeia de poder que está levando o Estado à perda da sua autoridade republicana e democrática há de ter causas outras que não derivam de um imediatismo recente. Vêm do buraco dos tempos.

Com quais reformas pretendemos alterar esse quadro dramático de um país que assiste, entre divertido e indiferente, ao naufrágio das suas instituições de governo e à estrutura própria do Estado? Com a retomada da bandeira parlamentarista, socorro de borracharia ao qual pensamos recorrer a cada vez que vemos furar um pneu sem estepe no porta-malas? Com o voto distrital, forma de consistório no qual imaginamos poder extrair o antídoto de todas as espertezas eleitorais?  A reforma administrativa, iniciada a cada governo novo e nunca concluída? A tributária, para taxar os salários e remediar os rendimentos dos grandes investidores? A reforma política, para reformar a organização partidária segundo o pleito dos donatários dessas rendosas capitanias eleitorais? A da educação, para servir a educação “para todos”, sem avaliação criteriosa de desempenho,  com a tolerância de sempre com o ensino perdulário de conhecimentos inúteis, as condições precárias da escola pública e o ativismo político-ideológico que contamina o espírito científico e o pensamento crítico com as certezas banais de velhos refrões surrados de outrora?

A desconstrução institucional que assistimos agora construiu-se à sombra de omissões e da inépcia de lideranças improvisadas que se reproduziram pela força das competências  vazias. Ontem e hoje. A nossa perspicácia, exposta a cerco ideológico tão fechado, permite-nos, entretanto, nos aventurarmos a tecer algumas variações comedidas sobre   a situação a que chegamos. Entender as circunstâncias, nesse caso, pode ser de boa ajuda. Faltam-nos, todavia, instrumentos que nos auxiliem na formulação de previsões, na antevisão da evolução provável de uma crise que se arrasta para mais de cinquenta anos. O presidente dá mostras frequentes de que não entendeu exatamente o tamanho do desafio que põe em cheque a sua desvalida compleição intelectual e política. De retórica precária e lógica combalida pelo esforço de contestação dos fatos e das suas perversas circunstâncias, Bolsonaro vive, com intensidade, as consequências das suas temerárias prédicas. De linguagem pouco asseada e adjetivação trôpega, arma a cada afirmação, intencional ou ocasionalmente proferida, o mote da contestação dos interlocutores. Castelo Branco criou, na sua reforma política, o MDB e lá aninhou os políticos que pretendia lotar na oposição, longe das indulgências do poder. Bolsonaro driblou o bom senso e armou a oposição por gestos e omissões imperdoáveis, deixou que vozes poderosas se aninhassem nas alianças que se formaram, deu-lhes voz, na medida em que reduziu o seu provimento de verbas e cargos. E, assim tendo obrado, pretendeu governar.

Não estamos, a rigor, às vésperas de um prélio entre candidatos (entre os nomes presidenciáveis não há muito escolher) em cujos discursos nos prometem o que nunca foram capazes de explicitar.

O que podemos esperar do futuro próximo anunciado nos atemoriza: uma eleição arrancada de uma caixa coletora de intenções mal urdidas? Ou os riscos de um mito renascido, pronto para, em nome desse povo desvalido, fazer o que sempre foi feito — acomodar os recém chegados nas baias do poder?

 

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

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