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Nós, mulheres. Por Angela Barros Leal

Montagem com base na tela “Mulher de azul lendo uma carta”, uma das mais famosas pinturas do holandês Johannes Vermeer, produzida por volta de 1663.

Esse é o meu filho, nadando atrás de um cardume de peixes prateados, mostra uma senhora a quem não fui apresentada, sentada a meu lado em uma mesa de aniversário. Aliás, desconheço a maioria das que estão à mesa, amigas também da aniversariante nesse evento só para mulheres. Na meia luz do restaurante, a claridade proveniente da tela do celular ilumina o rosto de minha vizinha com a delicadeza de uma tela de Vermeer.

Seguro o celular. Lá está o filho dela nas profundezas do oceano, capturado por artes tecnológicas capazes de superar a adversidade do ambiente, polegar erguido em celebração. Faço elogios à fotografia. Sinal para que ela dê início a uma sequência de imagens do rapaz, em terra, ar e mar, dedo indicador movendo-se veloz sobre a tela, da esquerda para a direita.

É dada a largada, como dizem os comentaristas das corridas desportivas. Outras vizinhas sacam seus celulares das bolsas minúsculas e muitos rostos se iluminam em dupla beleza: aquela concedida pela luz gentil do aparelho, e aquele brilho natural, procedente do orgulho materno.

Cabeças se aproximam e se agrupam, imersas em um nível de concentração que o garçom tenta quebrar, para poder servir os pratos de entrada. Meu filho. Minha filha. A família do meu filho, da minha filha. Meus netos, minhas netas, essas lindas criaturinhas que amenizam a dura realidade de sermos avós.

Minha memória retorna a tempos passados, aos slides exibidos em paredes brancas das casas de amigos, ou na superfície de lençóis estendidos para tal fim, utilizando projetores mecânicos que aqueciam e se tornavam mais ruidosos à medida que as imagens se sucediam.

Costumavam mostrar, em qualidade duvidosa, na semiescuridão em que as salas eram mantidas, os melhores momentos de passeios familiares que nós não poderíamos jamais perder, como nos animavam os anfitriões. Aqui e ali pressentia-se uma pontinha de inveja na audiência. Nada que pudesse reduzir o impacto daquele suprassumo da modernidade, nem a empolgação dos exibidores.

Alguns maridos aproveitavam a penumbra, recostavam-se nos sofás e dormiam durante as sessões. Cigarros acesos transformavam o feixe de luz do projetor em um cone dançante de fumaça. Cabia a nós, as mulheres, o dever de manter acesa a chama do interesse (real ou simulado), emitindo os Ohs! e Ahs! necessários a cada clique, a cada novo cenário.

Antes disso, no tempo de nossas mães, de nossas avós, deveria haver reuniões em que álbuns fotográficos com fotografias em preto e branco passavam de mão enluvada a mão enluvada, entre suspiros de encantamento e gorjeios de emoção (dissimulada ou verdadeira), enquanto maridos bigodudos enfumaçavam os gabinetes de estudo com seus charutos importados.

O garçom traz à mesa o prato principal, causando natural alvoroço. Por um acordo implícito os celulares são recolhidos às bolsas. Se as conversas rareiam, com as bocas ocupadas, as mentes prosseguem infatigáveis, a repassar o playlist do que ainda precisa ser visto pelas demais, sejam elas conhecidas ou não, estejam elas interessadas ou não.

A recolha dos pratos traz de volta nossos celulares. Entre o jantar e a sobremesa nos entretemos sobre as telas pequenas, acompanhando comemorações de Natal, de aniversário e de formatura de pessoas desconhecidas, valorizando os raros encontros familiares nos quais conseguimos reunir os parentes próximos que moram longe (parece que somos, quase todas, exportadoras de filhos).

Nossos rostos voltam a se aproximar. Estão banhados pela doce luz dos aparelhos, qual estivéssemos em volta de uma fogueira, e pelo resplendor que nem sabemos estar emitindo, ao sinalizar que de nós foi formada uma família, que a ela pertencemos, e que somos generosas o suficiente para nela incluir visitantes virtuais.

Daqui a cem anos, duzentos anos, qualquer que seja o avanço da tecnologia (hologramas tridimensionais? Teletransporte?), nós, mulheres, vamos continuar encontrando ocasiões para preservar essa mesma resplandecente cumplicidade. Se falsa ou verdadeira – aí será uma outra história…

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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