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Missão cumprida! Autenticidade, morticínio e a militarização da polícia na pandemia da Covid-19

Pedro H. Villas Boas Castelo Branco é Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ); Professor do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGD/UVA). Doutor em Ciência Política (IUPERJ), Mestre em Direito (PUC-Rio).

Post convidado

O recente retorno dos militares à cena política nacional ocorre num momento em que regimes democráticos, no Brasil e no mundo, sofrem o declínio da confiança nas instituições democrático-liberais. A militarização contemporânea tem sido associada por alguns autores a um conjunto global, sistêmico e estrutural com variações, no nível micro e macro, a partir da segunda metade do século XX. Senghaas (1974, p.7) considera o militarismo como a união do político ao militar e, mais concretamente, com o predomínio deste último sobre o primeiro e isso teria um reflexo empírico: por um lado, na perda da primazia política e do direcionamento político em relação aos planos militares e as necessidades postuladas pelo exército; por outro, na penetração dos imperativos militares na sociedade civil. O militarismo seria a ideologia que aspira a uma maior militarização da esfera pública e privada de uma sociedade. Possui um caráter dinâmico e pode representar a progressiva expansão da esfera militar sobre a civil (MONTENEGRO, 2019, p. 5). As distintas faces da militarização, em variados âmbitos das sociedades, interferem no plano interno dos Estados levando a uma policialização das Forças Armadas causada pela ampliação das funções de Defesa. Essa nova onda de militarismo nos governos e nas tomadas de decisões políticas estão tomando forma a convite de governos democraticamente eleitos, nos mais variados assuntos e, dentre eles, a segurança pública, as crises políticas e os problemas estruturais do estado.

Um resultado da elasticidade alcançada pelo conceito de Defesa, que abarca inúmeras atividades endógenas exercidas pelas forças castrenses, é a sua politização. A ampliação do emprego dos militares em funções domésticos tem a propensão de provocar o desequilíbrio das relações civis-militares. Ao atuarem com regularidade fora das funções tradicionais da Defesa em regimes democráticos, como é caso da dissuasão contra ameaças externas, a corporação militar tende a dedicar-se a cada vez mais à manutenção e maximização de benefícios corporativos políticos que resultam de seu emprego contínuo nas atividades mais variadas que vão da atuação na segurança pública ao fornecimento de água em regiões remotas. Pion-Berlin apresenta outra forte tendência: à medida que o governo se torna cada vez mais dependente das Forças Armadas para executar políticas públicas internas, há o aumento da propensão a visualizar os problemas a partir da perspectiva bélica militar também no estágio de formulação de políticas.  Os problemas, portanto, passam a ser enquadrados de forma a favorecer a solução militar, a militarização da política.

O morticínio decorrente da pandemia no Brasil, ficou marcado pelo papel desempenhado pelo ex Ministro da Saúde, General Pazuello, na política e que acabou por contribuir para se alcançar mais 533 mil mortes, muitas possivelmente evitáveis, durante a sua gestão. A escolha e atuação do General da Ativa à frente da pasta da Saúde, em meio à maior crise da história recente da humanidade, contribuiu para o aumento da erosão da democracia no Brasil e evidenciou o potencial risco de se ter um militar da ativa em cargo civil.

A inversão do papel civil-militar em militar-civil provoca o colapso das instituições democráticas e a gestão ineficiente em crises que não se confundem com a guerra.  A militarização da política pode se concretizar por meio da transferência a militares de funções tradicionalmente destinadas a civis.  A principal distorção, porém, se observa quando se atribui aos militares a instância decisória das questões políticas mais relevantes para a nação. Neste sentido, há um desvirtuamento da relação civil-militar, uma conversão da relação em militar-civil, portanto subordinação do civil ao militar.  (GOUVÊA; CASTELO BRANCO, 2020, p. 137). A guerra deixa de ser o desdobramento da política e a política passa a ser comandada pelos militares. É um condicionante para que o estado de exceção possa se naturalizar a qualquer momento (CASTELO BRANCO; GOUVÊA). Por isso, o garante do sistema democrático precisa estar subordinado à autoridade civil, sob pena da força castrense se autonomizar e se voltar contra as instituições democráticas que o mantém, passando de instituição de Estado à facção pretoriana. A fonte de legitimidade da autoridade civil que submete a autoridade militar é voto popular (CASTELO BRANCO; GOUVÊA). É importante discernir quais os tipos são prejudiciais e quais não são e duas hipóteses são apresentadas (PION-BERLIN, 2018): a influência dos militares é autônoma ou os militares estão presentes por designação das autoridades civis legítimas? No primeiro caso, os militares são tomadores de decisões políticas exercendo influência política excessiva, coercitiva e ilegítima, mas conhecida como pretoriana. Enquanto atores pretorianos impõem suas visões aos líderes políticos, aconselhando ou governando diretamente sem a supervisão dos civis. No segundo cenário, os militares recebem as decisões e executam a vontade de seus supervisores políticos, independente da missão recebida. Podem ser vistos em vários campos, mas não definem, dominam ou manipulam tarefas para seus próprios fins corporativos, ou seja, simplesmente cumprem os objetivos políticos de um governo eleito. São subordinados ao controle civil, mesmo se forem empregados de forma divergente de sua natureza em projetos cívicos, sociais, econômicos e de segurança de qualquer tipo.

Carina Barbosa Gôuvea é Professora do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Pós Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Doutora e Mestre em Direito pela UNESA. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0659-5036

Observamos, na política brasileira contemporânea, um processo de inversão do aforismo clausewitziano, cuja concretização se traduz na militarização da política: em vez de a guerra ser comandada pela política, a política passa a ser comandada pela guerra. Assim, a política se torna bélica e a guerra perde o seu caráter instrumental, de modo que a espada deixa de ser uma ferramenta de defesa nacional democrática. A erosão do controle civil sobre o instrumento castrense representa uma ameaça à democratização. Refletindo diretamente sobre o papel dos militares na política, a politização das Forças Armadas representa, para Linz (1978, p.39), um processo de decadência do sistema democrático. Portanto, as constituições liberais democráticas tendem a vedar a participação do militar da ativa em atos políticos específicos; impedir protagonismos políticos e insurrecionais de militares e dos comandantes das forças em nome do poder constituído (governança) e contra as salvaguardas institucionais; impede atuações pretorianas dos militares. Caso contrário, esta animosidade acaba representando o tempero fundamental que não se dissocia da violência.

No Brasil, General Pazuello participou de um ato político em apoio ao presidente  Bolsonaro no Rio de Janeiro, sem autorização, e, no entanto, não houve punição à transgressão disciplinar. A defesa apresentada representa uma grave distorção teórica do que vem a ser ato político e que foi aceito pelo Comandante do Exército Brasileiro, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que considerou “não ter restado caracterizada a prática de transgressão disciplinar”.  Este ato representa, por um lado, a militarização da política e, por outro, a politização das Forças Armadas no Brasil.  A falta de punição do General Pazuello não só legitima o movimento populista de Bolsonaro, mas também aponta para a degradação do sistema democrático brasileiro, pois representa um comprometimento das Forças Armadas com um projeto de poder antidemocrático – instituição permanente com base na hierarquia e disciplina.

A militarização da política também é percebida  na simples retórica bélica “missão dada, missão cumprida” o que significa que as ações governamentais passam a se tornar missões militares, muitas  vezes, despidas de caráter humano e humanitário. As missões são cumpridas independente da responsabilidade em tentar evitar o morticínio. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, o General Pazuello, respondeu à pergunta do Senador Renan Calheiros: a que atribui a demissão do cargo de Ministro da Saúde? Missão cumprida.  A retórica  da missão cumprida,  que se relaciona à  cadeia de comando, faz sentido no mundo militar, na guerra real, na caserna, mas  não na política.

A legitimação da militarização da política e politização das forças armadas significa tornar legítima a governança populista de Bolsonaro e, consequentemente, degradar os valores democráticos brasileiro.

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