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Maniqueísmo e conflito

Rui Martinho é professor da UFC, advogado, bacharel em administração, mestre em sociologia e doutor em história. Com 6 livros publicados e vários artigos acadêmicos na área de história, educação e política. Assina coluna semanal no Focus.jor.

Por Rui Martinho Rodrigues
rui.martinho@terra.com.br
Maniqueísmo, doutrina originaria da Pérsia, de índole religiosa, difundida no ocidente a partir do século III, classifica tudo como bem ou mal, cujas relações seriam inconciliáveis. Colocando tudo em dois sacos simplifica-se a comunicação, alcançando um público maior. Enseja o sentimento de ser sábio e virtuoso. O maniqueista se coloca sempre do lado “do bem”, em luta “heroica” contra o mal. Não importa que o “heroísmo” seja apenas verbal, “atestado” pelo uso de linguagem agressiva.
A negação da conciliação radicaliza as relações. O conflito, porém, é sempre atribuído ao outro, classificado como “do mal”. O diálogo é interrompido ou é substituído pelo falso diálogo. O que o outro disser tem de ser contraditado, embora o “herói” não saiba o que o interlocutor quer dizer, seja porque ele acha que “sabe” simplesmente que aquilo é “do mal”, ou porque aquilo poderá levar, alguns raciocínios depois, a uma conclusão contrária ao pensamento do maniqueista. Dizer que tarifa de eletricidade abaixo do custo vai quebrar as fornecedoras de energia desaprova a conduta de seu lado na política. Então não importa se é verdade. É preciso desacreditar, desviando o debate para a “perseguição implacável a alguma personagem política.” Mostrar a inviabilidade de uma política social pode até levar o prisioneiro do paradigma “do bem” a compreender a impossibilidade, mas ele afirmará que é preciso insistir no inviável. Isso leva ao desastre? Não importa. O voluntarismo “do bem” é cego.
Dizer que o maniqueísmo não condiz com a realidade contraria a tática do combate ao outro e a classificação bem/mal. É preciso dizer que as diferenças ontológicas não comprometem as identidades políticas. É preciso confundir essência com acidente. A filosofia do ser considera essência como a coisa sem a qual o ser deixa de ser o que é. O ser humano precisa ter o genoma da espécie ou não é humano. Acidente é aquilo que pode não fazer parte do ser sem que ele perca a identidade. Olhos azuis, castanhos ou verdes são acidentes que não impedem nem asseguram a condição humana.
Colocar Tony Blair e Kim Jong-un no mesmo balaio dizendo que as diferenças entre eles são meramente acidentais é dizer que na essência eles são ontologicamente iguais. A família Mesquita, do jornal O Estado de São Paulo, seria ontologicamente igual aos seus adversários do regime militar. Nos exemplos citados as diferenças (“acidentais”) seria classificadas como “posições extremadas” e “moderadas” de uma mesma essência.
A dificuldade aguarda quem renuncia ao dualismo e aceita a diversidade do mundo real. O sentimento de superioridade moral e intelectual também se perde. A base filosófica da crítica ao reducionismo dual não decorre de nenhuma tese sobre a crise do socialismo real. É uma posição filosófica sem a qual o diálogo se inviabiliza e é substituído pelo conflito. A desclassificação do outro, o uso de adjetivos como “estúpido” reflete a desconsideração da pluralidade mais ampla do que os o dualismo bem x mal.
A imunização cognitiva, lembrada por Thomas Samuel Kuhn (1922 – 1996), na obra “A Estrutura das revoluções científicas”, acomete pessoas inteligentes e bem informadas. O conhecimento também pode se tornar um obstáculo epistemológico, adverte Gaston Bachelard (1884 – 1962).
Os imunizados contra a realidade e a razão desfrutam do prazer de explicar tudo com facilidade, comunicando-se com amplas parcelas da população sem muito esforço, sentindo-se sábios e virtuosos. Mas leva à intolerância, a erros graves, prejudica a paz social e o entendimento sem o qual não se constrói uma nação próspera e pacífica.

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