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Fraude às cotas de gênero na visão de três advogadas


FRAUDE ÀS COTAS DE GÊNERO: NOTA AOS(ÀS) MINISTROS(AS) DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (RESPE Nº 193-92.2016.6.18.0018)
Por Raquel Ramos Machado,
Jéssica Teles de Almeida e
Isadora Mourão Gurgel Peixoto Alves
O Tribunal Superior Eleitoral deverá retomar, nos próximos dias, o julgamento do REspeº nº 193-92.2016.6.18.0018,que vai definir os efeitos jurídicos do reconhecimento da fraude de candidatura em AIME e AIJE.
Certamente, o referido julgamento possui transcendência jurídica que extrapola os interesses individuais da causa, o que nos motiva a pensar o problema jurídico, contribuindo para a resolução justa do mesmo, com foco principalmente na finalidade da norma e, sobretudo, do Direito.
Inicialmente, esclarecemos que não possuímos qualquer interesse individual no processo. Não conhecemos as partes ou seus patronos, assim como nunca tivemos contato com os mesmos, o que nos concede isenção para pensarmos o caso concreto. Inclusive, em março de 2019, foi elaborada, pelo Ágora, grupo de pesquisa do qual estas signatárias são integrantes, a cartilha “Guia Prático: A participação política da mulher brasileira”, da série “Educação para Cidadania”, o que corrobora nosso compromisso meramente acadêmico com a temática.
O presente caso envolve a investigação – e constatação – da prática de fraude por coligações que elegeram mulheres não envolvidas no ilícito e cujos mandatos foram cassados por decisão da Corte de origem.
A representatividade política feminina no Município de Valença, no Piauí, poderá ser reduzida a depender do entendimento do Tribunal Superior Eleitoral a respeito dos efeitos do reconhecimento de fraude às cotas de gênero em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME).
E o mais grave, a depender do presente julgamento, mulheres eleitas, que fizeram campanha e que não anuíram com a fraude, segundo dados retirados da moldura fática delineada nas instâncias ordinárias, irão perder seus mandatos.
A ciência, que pretende ser evolutiva e aprender com os erros, não pode parar de refletir sobre problemas que surgem. Com o Direito não é diferente.
Incontroverso destinarem as cotas de gênero à proteção da mulher e que os instrumentos legais para verificação e constatação da fraude podem ser Ação de Investigação Judicial Eleitoral e Ação de Impugnação do Mandato Eletivo. Claro avanço, de índole processual e no âmbito do direito constitucional de acesso à justiça, constatou-se a partir dos julgamentos dos REspe em AIJE nº 243-42.2014.6.18.0024 e REspe em AIME nº 1-49.2013.6.18.0024.
Quanto a essa questão, algumas controvérsias processuais ainda persistem e não são de fácil resolução, o que exige uma constante reflexão sobre o tema, principalmente diante de casos concretos que trazem como elemento central o fato de existirem candidaturas femininas eleitas, vitoriosas, e que não tinham ciência da fraude.
Para este julgamento, que já se encontra com 02(dois) votos divergentes quanto aos efeitos do reconhecimento da fraude, o Tribunal Superior Eleitoral deverá decidir os seguintes problemas jurídicos que o presente caso concreto suscitou:
1) Quem se beneficia com a prática de fraude no Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, para fins de intepretação do art. 22, caput, da LC nº 64/90? 2) É possível anular o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, que é o registro partidário (coletivo) em sede de AIJE e AIME, ações que não admitem no seu polo passivo o partido jurídico ou qualquer outra pessoa jurídica? 3) É possível a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas ao caso, considerando que só há nulidade (cassação dos registros individuais das mulheres não envolvidas na fraude) se houver prejuízo (o que elas não sofreram com a fraude, vez que foram eleitas)? 4) A ilicitude praticada por um partido macula toda coligação?
São indagações instigantes. Refletindo sobre elas, constatamos ter a Lei Federal nº 12.034/2009 instituído a obrigatoriedade no preenchimento desse percentual mínimo e máximo por gênero. Por conta desse fato, as fraudes às cotas de gênero passaram a ser prática comum eleição após eleição.
Candidaturas femininas passaram a ser lançadas pelos partidos políticos de forma fictícia, não com a finalidade de incrementar a participação da mulher na política e investir nas candidatas, mas sim com o único propósito de cumprir um requisito de registrabilidade eleitoral e garantir que os 70% das candidaturas masculinas lançadas fossem deferidas.
Uma lei, portanto, que surgiu para proteger juridicamente a mulher e seu direito à participação política, está sendo fraudada para que as candidaturas masculinas, em sua grande maioria, tivessem viabilidade.
O caput do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 determina que aqueles que praticaram ou foram beneficiados pelo ilícito (abuso de poder) podem perder seus mandatos.
Teriam, as candidatas eleitas, se beneficiado dessa fraude? Se a fraude é realizada para que o partido possa lançar o máximo de candidaturas masculinas possíveis, apenas estas candidaturas é que são beneficiadas com a sua prática.
As candidaturas femininas viáveis não se beneficiam com o ilícito. Mesmo após uma readequação do percentual de gênero, cada coligação envolvida, após a exclusão das candidaturas laranjas, teria o direito a lançar 06 (seis) candidaturas, das quais 02 (duas) seriam femininas.
De uma forma ou de outra, as candidatas reais teriam espaço no processo eleitoral, independente da prática da fraude. Já o mesmo não se verifica com as candidaturas masculinas, tendo em vista que, no caso concreto de Valença (PI), 03 (três) candidatos deveriam ter ficado fora das eleições de 2016.
No que tange à nulidade do DRAP, percebemos que inobstante este ser o documento objeto da fraude e que, por isso, deve ser nulo, não seria a AIJE, nem a AIJE a ação processual adequada para declarar sua nulidade, em razão de não ser possível figurar, no polo passivo da demanda, a figura do partido político ou da coligação, responsáveis por sua elaboração e formalização perante à Justiça Eleitoral.
Admitir serem as ações citadas meio para a declaração dessa nulidade equivaleria à Justiça Eleitoral reconhecer a prática de abuso de poder econômico em contratos irregulares de doação e, além desse reconhecimento, anular os mesmos. A nulidade (anulação) não é um efeito previsto no art. 22 da LC 64/90.
É possível ainda se pensar na questão através do princípio da instrumentalidade das formas, pelo qual só há nulidade se houver prejuízo. No caso dos autos, caso as fraudes tivessem sido identificadas no processamento do pedido de registro, as coligações teriam sido intimadas para lançar, no DRAP, apenas as candidaturas viáveis e, ainda, para readequarem o rol e percentual dos candidatos e candidatas. Ou então, essa adequação se daria de ofício, similar ao que o juízo da 118ª Zona Eleitoral do Piauí realizou na sentença de primeiro grau.
Se assim tivesse sido feito, no máximo teríamos um cenário em que as candidaturas fictícias teriam sido descartadas e as coligações, após a readequação aos percentuais de gênero, teriam lançado, cada uma, apenas 06 (seis) candidatos, dos quais 04 (quatro) seriam do gênero masculino e 02 (dois) do feminino.
A última indagação pertinente refere-se ainda à possibilidade de uma fraude praticada por um partido coligado afetar toda coligação. Segundo a professora Ana Cláudia Santano em escrito em coautoria com outros pesquisadores, “a ampliação de sanções para toda a coligação é indevida, justamente pelo fato de que os outros partidos realizam as suas próprias convenções, mas não possuem qualquer abertura para influenciar nas convenções partidárias dos demais”.
Sanções são aplicadas de forma individualizada. Essa é regra básica de quaisquer ramos do Direito. Não há como se punir terceiros, inclusive de boa-fé, como se extrai da moldura fática.
São vários ângulos de análise que o caso concreto suscita. Nenhum deles pode, contudo, afrontar a finalidade da norma, que visa justamente incrementar a participação política da mulher, trazendo mais igualdade e paridade de gênero nos espaços formais de poder.
As cotas para mulheres na política existem em vários outros países, não só no Brasil, são constitucionais e amparadas em normas internacionais e visam alcançar um quadro mais equilibrado entre homens e mulheres na política, tendo em vista que as mulheres foram excluídas por séculos dos espaços formais de poder.
Os partidos são destinatários de comandos legais que estipulam deveres e lhe destinam recursos para formar e capacitar mulheres para o exercício da política formal. Ao deixarem de observar essas normas, criam um ciclo de autoexclusão da mulher na política, pois as vésperas do pleito “se socorrem” de candidaturas sem potencial eleitoral.
Clara é a responsabilidade partidária nesse quadro de desigualdade entres os sexos na política brasileira. Essa omissão pode tratar-se, inclusive, de mero jogo de interesses, vez que ao capacitarem as mulheres correm o risco de democratizar o poder partidário que hoje se concentra nas mãos de poucos grupos políticos. Assim, a falta dessa capacitação configura-se como estratégia de poder e a eficácia de uma norma não pode ser questionada sem que esse fator seja levado em consideração.
Esse fator reforça a necessidade da proteção da participação política da mulher do próprio partido e coligação, mas, sobretudo, conforme o Direito, seja ele Internacional, Constitucional e Eleitoral. Integridade, coerência, sensibilidade e finalidade normativa são valores que se espera do TSE no julgamento de um precedente que será (ou não) tão importante para o bloco normativo de proteção à participação política da mulher.
Raquel Cavalcanti Ramos Machado: Professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará. Advogada. Graduada pela Universidade Federal do Ceará. Mestre pela Universidade Federal do Ceará. Doutora pela USP. Visiting Research Scholar da Wirtschaf Universistat Vienna (2015 e 2016). Professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade Paris Descartes (2017). Professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Firenze (2018). Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Direito Eleitoral “Ágora: Educação para a cidadania: denúncia e esperança.” (UFC). Coordenadora do projeto “Observatório Eleitoral do Ceará” (www.observatorioeleitoralce.com). 
Jéssica Teles de Almeida: Professora da Universidade Estadual do Piauí. Advogada. Vice-Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão em Direito Eleitoral “Ágora: Educação para a cidadania: denúncia e esperança” (UFC) e do grupo “Direito Humanos e das Minorias” (UFC). Coordenadora do projeto “Observatório Eleitoral do Ceará” (www.observatorioeleitoralce.com). 
Isadora Mourão Gurgel Peixoto Alves: Graduanda em Direito pelo Universidade Federal do Ceará. Membro da Diretoria Acadêmica do Ágora.

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