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Folhetim de Santa Ozita – A curandeira que desafiou o governo do Ceará. Capítulo 4/7. Por Angela Barros Leal

“Eu não vi Milagres”

O repórter Luciano Carneiro não gostou do que viu no endereço da Santa Ozita no São João do Tauape. “Nada vi que justificasse aquela alucinação coletiva”, escrevera friamente, embora ainda sob o calor da missão empreendida, durante a qual vencera as filas quilométricas – ou entrara “extra-fila”, como dissera em eufemismos, pulando o muro da casa para se avistar com uma relutante Ozita.

Em fevereiro o jornalista havia presenciado um caso de fraude em Floriano, sertão do Piauí, e confessava ter sentido “a mesma impressão de descrença e revolta”. O subúrbio fortalezense do Tauape não era mais o que conhecera, esquecido de sua pacatez habitual. “Quatro filas enormes partiam da casa 42, onde a ‘moça das curas’ se mostrava aos crentes. Filas perdiam-se de vista e iam – como pude saber – contornar quarteirões numa extensão talvez jamais atingida no Ceará por qualquer outra no gênero.

Assombrava a promiscuidade de homens, mulheres, crianças, “cancerosos, morféticos, tuberculosos”, ao lado das buzinas dos automóveis, ônibus, caminhões, o empurra-empurra da multidão ansiosa para ser vista por Ozita, “moça branca, fisionomia agradável e cabelos longos e lisos”. Nas matérias seguintes Luciano detalharia serem os cabelos dela oxigenados.

O breve diálogo estabelecido entre Luciano e Ozita, após ser convencida a deixar o quarto onde se refugiara ao avistar a máquina fotográfica, foi reproduzido na matéria. “O que a senhorita vê ou sente?”, perguntara Luciano, para ouvir: “Por ora, nada. Mas há três anos eu, minha mãe e uma irmã ouvimos uma Voz, e desde então temos ajudado a humanidade”. “Que Voz foi essa? O que dizia?” insistia o jornalista. “Ah, não lembro”, era a vaga resposta.

“A senhorita acredita no espiritismo?” questionara. “Não. Sou católica, devotíssima de N. Sra da Conceição”, esclarecera Ozita, tratando de encerrar a conversa: “O senhor, por obséquio, deixe-me de mão porque a multidão espera lá fora. Fale com as pessoas que se curam aqui mesmo. Estão aí fora”. E complementara mostrando as provas dos milagres, encostadas na parede atrás da cadeira dela. “Vê esse conjunto de muletas? Alguns pares foram deixados aqui por cearenses, outros por paraibanos e rio-grandenses”, paralíticos que teriam voltado a andar sem ajuda, após seu curativo  olhar.

Luciano cessara o diálogo, mas não a observação. “Os clientes, em fila, transitam pela frente dela enquanto dois garotos dizem, com a persistência de um disco: ‘Voltem quinta-feira. Não tomem remédio se querem se curar. Voltem quinta-feira…’” Diante de Ozita, hieraticamente sentada na cadeira de braços colocada sobre um estrado, que a elevava da multidão, protegida dos passantes por uma espécie de grade baixa de madeira, eram mostradas “as maiores deformações humanas”.

Ozita não contraía um músculo da face, um só momento. Apenas passava um lenço sobre o rosto, de quando em vez, mostrando sofrer, como qualquer ser humano diante dela, o desconforto da temperatura elevada pelo acúmulo de corpos, e pedia que apressassem a passagem: “Vão, vão embora, e voltem quinta-feira.

Na saída da casa, após o olhar da Santa havia “um grande cofre com uma fenda” diante do qual passavam todos, “absolutamente todos”, e onde um garoto, sob fiscalização de uma senhora, repetia: “Uma esmola para a Santa, deem uma esmola. Vocês vão se curar. Não tomem remédio e voltem quinta feira”. Com tristeza Luciano vira as moedas, “que caíam em avalanche.”

Outros jornalistas haviam noticiado as curas, sem maiores investigações. Não Luciano Carneiro.  Ao lado de suas outras atividades, como a audaciosa viagem em teco-teco que fizera para Poços de Caldas, como a produção de grandes reportagens sobre os feitos do jangadeiro Jerônimo, ou a migração dos cabeças-chatas para a Amazônia, publicadas na prestigiada revista O Cruzeiro, empenhara-se em procurar os supostos curados.

Os resultados da busca pelo cego que vira, o paralítico que caminhara, a louca que recuperara o uso da razão, eram descritos em sucessivas primeiras páginas do Correio do Ceará.Passei uma hora e pouco tentando localizar os curados”, escrevera no jornal. Avistara sim uma jovem que ficara boa de uma dor na perna, “o rosto em certas contrações de dor. […] E ao me anunciar como repórter ela refez-se e pareceu sorrir. Antes parecia chorar”; visitara o paralítico que não conseguira esconder o sofrimento para andar, desabando sobre a cadeira de balanço.

Eu não vi milagres”, informara Luciano Carneiro, complementando suas observações com entrevistas a médicos, sacerdotes e autoridades. Indiferente às ameaças e maldições dos fiéis lançadas sobre ele, desde a primeira reportagem, Luciano conduzira o público leitor pelos meandros da histeria e da autossugestão, pelo mundo da fantasia e do “pensamento mágico primitivo”, como categorizara o Dr. Wandick Pontes, diretor da Casa de Saúde São Gerardo, e pela firmeza da Lei: “Caso de Polícia”, constatara o Subdelegado Roldão, imprensado pelo povo diante da casa de Ozita.

(Continua)

Angela Barros Leal é jornalista e escritora.

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