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Finalmente, um golpe legitimamente constitucional. Por Paulo Elpídio

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

“Uma coisa nunca é como é. Não há o certo, o errado absolutos”,
general Golbery do Couto e Silva
“A verdade é que os homens estão cansados de liberdade”,
Benito Mussolini

A “ruptura” institucional (ou a quebra do “pacto republicano”, como dizem os
mais confiantes), foi tão longe, no Brasil, que já não interessam as suas causas.
Perdem-se na noite dos tempos, são disfunções acumuladas de um sistema
político que em nada mudou, desde os tempos da Independência e por todas as
repúblicas construídas pela nossa persistente teimosia. Tomou distância das
práticas das Cortes d’além-mar sem sacudir os hábitos de um parlamentarismo
anacrônico, indisposto diante dos progressos dos séculos. Fez-se república e,
como se não bastasse, presidencialista, à moda recente do modelo americano.
Pois mudamos pouco nessas mudanças realizadas à cópia das novidades do
tempo. Maiores riscos trazem as “explicações” desse passado obscuro de ideias e faltoso de homens perdidos nos espaços (quase ditos nos “vazios”) da mídia e de observadores desatentos às suas próprias observações. O despreparo de muitos analistas ou o viés ideológico das suas interpretações ocultam, no mais das vezes, a natureza das questões e as intimidades históricas e políticas do que poderiam revelar. Não cuido por eximir-me desse desleixo, caso seja, como outros, que creem ter encontrado a chave dos segredos desse passado mal encadernado.

Reconheço a minha imprudência de analista presunçoso e carecido da competência devida. Agarro-me, entretanto, ao senso comum e às coisas menores que põem em dúvida certezas formais que a muitos agradam e a tantos beneficiam. Há um “acacianismo” no ar e de tal modo persistente o seu simulacro na política brasileira que faria inveja ao Conselheiro Acácio, personagem criada por Eça de Queiroz, representação fiel da índole brasileira e do caráter dos brasileiros nas tortuosas questões da política e do Estado…

Demos para discutir, agora, com visitas obrigatórias ao texto constitucional e o beneplácito de juristas e percucientes constitucionalistas, sobre a função democrática de uma intervenção militar para ajuste na máquina institucional, mais ou menos grimpada pelo uso inadequado. Discute-se como ela se daria e quais requisitos legais poderiam levar à substituição de um governo democrático por uma ditadura, clarividente, de preferência daquelas ditaduras referidas por Lênin, exercidas segundo o “princípio da autoridade moral do indivíduo”, a exemplo dos monarcas esclarecidos do século das luzes e dos Estados aprisionados pelas ideologias “libertadoras” do século XX. A maioria dos que se debruçaram sobre a questão, tão grave quanto temerária, concluiu que toda e qualquer ditadura é inconstitucional. Pela graça dessa revelação, dúvidas se desfizeram no ar e até mesmo as criaturas mais recalcitrantes convieram que, por serem inconstitucionais, as ditaduras são ilegítimas. Sem direito a apelação para uma terceira instância que se propusesse a debruçar-se sobre matéria de tal modo complexa, quanto carregada de risco e sobre ela exarar sentenças e razões finais.

A ninguém ocorre duvidar que o cercado constitucional que limita os domínios de cada um dos 3 eminentes poderes arriou e as estacas que ficaram de pé já não se aguentam. É terreno de pasto comum. O executivo tenta governar, mas não sabe como; tropeça na inépcia de uns e no oportunismo de outros. Recusa alianças, veste a armadura de cruzado e termina enredado pelo cerco dos refugados da primeira hora. Consolida a esquerda nas suas eructações de ofício e acalenta a lamúria e os queixumes da direita em seus vagidos inaugurais. Mostra-se gerador de todas as crises; mesmo quando não existem, soa-lhe convenente que sejam produzidas. Anuncia o que não pode cumprir. Cumpra o que não poderia anunciar. Nomeia opositores, ao negar-lhe o pão nosso de cada dia da sobrevivência política das alianças bem
aventuradas. Com a mesma desenvoltura, elege cortesãos e uma fidelíssima companhia de súditos cujas lealdades são provisórias, como o são os interesses que a muitos inspiram e dão força.

O legislativo deu para querer governar, legislar e julgar, mas não descobriu por onde começar – embora saiba perfeitamente aonde quer chegar. Enfiado no camisão democrático de casa do povo, procura encaixar-se no padrão das virtudes republicanas, exibe o ar de legitimidade incontestável, e faz por onde ignorar os maus passos dos que conquistaram os seus mandatos e macularam o princípio da
representação. O judiciário brande brocardos latinos, exerce poder de polícia, legisla, governa e, quando lhe sobra tempo, exerce a judicatura. E o faz com esmero na tessitura de textos fluentes, caudalosos, votos e pareceres a preencherem centenas de páginas que a muitos assombra pela erudição e neles desperta admiração e respeito pela elevada ciência produzida. Entre pareceristas, há os que se valham da língua alemã e arraste para as suas razões citações de luminares do direito germânico. Pois a essas augustas instâncias acudiu a vontade de legislar e governar, como não fossem suficientes pareceres, embargos e votos a serem apreciados e construídos, tão carecidos andam os brasileiros de justiça.

Essas instâncias serenas do poder negam e refutam as intenções que lhes são atribuídas, as de exorbitar das suas competências constitucionais. E apontam a quem cabe essa desarrazoada, porém dissimulada iniciativa, segundo as suspeitas da politização da justiça e de judicialização da política que a todos contamina e desavisa. A cada um dos poderes sobra a alternativa de dois outros poderes, igualmente independentes, para a configuração desses ímpetos pouco democráticos e muitos menos republicanos. Da parte do governo, a intenção de desferir um golpe, apontada pelos legalistas de prontidão, que os há e não são poucos — é terminantemente negada. E com tamanha veemência que até mesmo as suas lideranças mais combativas cumprem por aceitar a vontade expressa pelas autoridades constituídas – não haverá intervenção a qualquer título ou razão — a não ser em cumprimento da vontade do povo.

Pois aí justamente surge a dúvida sobre um enigma indecifrável. Admitida a possível intervenção com assentimento do povo, essa possibilidade não configuraria, nesses termos, ato antidemocrático, muito menos a quebra das instituições. Desde que essa ruptura não se realizasse sem a concordância do povo. Donde, a intervenção – o golpe – nessas circunstâncias – seria evento legitimamente democrático, desde que ao povo agradasse. Chegamos, assim, a um impasse preocupante. Golpe, no Brasil, só com a aceitação das Cortes, do parlamento – e do povo! Requinte de uma nova engenharia do Estado em um país republicano e democrático, o golpe só haveria de ser considerado e aceito, mediante um plebiscito. Consulta ampla e irrestrita nas dobras anunciadas de uma democracia direta.

As ditaduras em geral padecem de uma síndrome de trato complexo. A todas elas e aos seus iluminados inspiradores e chefes ocorre um irreprimível sentimento de respeito pela legalidade e a inevitável frustração por verem perdida a legitimação dos seus atos por esses feitos reprováveis. A síndrome do golpe os acompanha e provoca grande desapontamento. Por essa razão, provavelmente, as ditaduras se cerquem de uma refinado aparato jurídico com a intenção louvável da depuração dos seus pecados de origem e lhes concedam a graça do reconhecimento popular. Raro que as ditaduras dispensem os ritos jurídicos que as asseiam e limpam das manchas da força. No Brasil, pelo menos três constituições foram elaboradas no recôndito da usinagem constitucional, a salvo das influências externas. Vargas produziu duas e
os governos militares, uma. A inspiração dos preceitos e dos dispositivos essenciais vieram de um mesmo e único mestre de obras, ajudado pelos acólitos recém-chegados. Francisco Campos foi imbatível na arte da metáfora constitucional, cortava os casacos a partir de moldes redesenhados para ocasiões que tais; o talhe seguia o prumo da tesoura enquanto lhe sobrasse panos para as mangas… Dados os ajustes finais e passado a ferro, não havia governo, por mais carecido dos cosidos democráticos, que perdurasse com qualquer traço de
autoritarismo.

A visão transformadora do artesanato constitucional reforça a capacidade regeneradora dos consertos da engrenagem do Estado. Nada como uma carta constitucional para enfrentar os problemas correntes das ameaças que cercam a democracia. Basta a advertência impositiva para calar os indispostos com a razão legal: “Está na Constituição!” Para dirimir as hesitações e a apascentar a nossa consciência democrática, tão necessitada de estímulos, tenha-se como aceito e bem assentado que qualquer intervenção nos poderes da república, só há de ser praticada pela livre vontade do povo. E o procedimento há de realizar-se em consulta ampla e obrigatória.

Como pode a muitos parecer que as formas tradicionais de representação estejam fora de moda e já hajam cumprido o seu papel, que se recorra ao plebiscito. Golpe só pela vontade do povo… Daremos exemplo ao mundo de como fazer uma intervenção para-constitucional: a obediência à vontade da maioria… Nem à Alta Corte americana ocorrera solução tão sábia quanto brilhante. Data venia.

[Os conceitos e referências relacionados direta ou indiretamente com a realidade estão
contaminados por forte carga de ironia o que torna a leitura deste texto desaconselhável para
as pessoas menos precavidas]

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