Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

Feitos e frutos. Por Angela Barros Leal

Imagem apontada como a única foto de Antônio Conselheiro logo depois de morto na última fase da Guerra dos Canudos. Foto: Divulgação

Não posso me considerar uma aficionada de Antônio Conselheiro, ou sequer conhecedora do homem e do cenário épico que se armou à sua volta. Longe disso. Posso, porém, como milhares de outros cidadãos, colocar meu nome entre os curiosos pela vida desse homem que estava no lugar certo e na hora certa para implantar, em um pequeno povoado nordestino, seu próprio sistema de convivência social, para abalar os frágeis fundamentos da República nascente, e para ser desapiedadamente castigado por seu misticismo, sua crença, sua fé, como se queira chamar.

Tenho dois irmãos que repartem igual interesse. Talvez isso se dê por trazermos no nosso sangue, apesar de tão urbanos, a gênese agrária e pastoril de Quixeramobim. Talvez por uma vocação inata e sem compromissos para investigar fatos da nossa história, sem nenhum outro propósito além de conhecê-la um pouco mais. Ou talvez vejamos nisso o resgate de uma dívida com nosso pai, a quem nunca ouvimos o suficiente – sendo esta a sina dos pais e a pena perpétua dos filhos.

Fato é que eles e eu, mexendo aqui e ali, encontramos nos galhos mais altos de nossa árvore genealógica um parentesco distante com Marica Lessa, a malfadada Maria Francisca de Paula Lessa, senhora de Quixeramobim, inspiradora do livro de Oliveira Paiva, “Dona Guidinha do Poço”. Lá em cima, encarapitada acima dos avós de nossa avó, paira a provável mandante da morte do marido, condenada a vinte anos de prisão com trabalho, fadada a morrer pobre e louca no Asilo de Alienados da Parangaba, em data que permanece desconhecida.

Era rica e poderosa em seus tempos de glória, e como tal seria chamada com frequência para amadrinhar a meninada nascida feito mato em volta da sua fazenda. Assim podemos entender que um de seus afilhados tenha sido Antônio Vicente Mendes Maciel, o futuro Antônio Conselheiro, mais um a receber os Santos Óleos na pia batismal da Matriz, mais um fio a se enroscar nos mil fios dessas histórias de Quixeramobim.

E retorna meu irmão, encaminhando pequeno anuncio do jornal Pedro II, datado de 18 de novembro de 1857, no qual “o abaixo assinado, possuído da mais viva satisfação, tem a honra de participar ao respeitável público que pagou sua dívida, que se tinha responsabilizado por seu mui prezado pai, o finado Sr. Vicente Mendes Maciel, de saudosa memória”. O abaixo assinado, claro, era Antônio Vicente Mendes Maciel.

Tinha 27 anos e em sete breves linhas não esconde o orgulho de haver saldado a dívida paterna, restaurando a imagem do pai e dele próprio, pequeno comerciante em um centro menor ainda, deixando transparecer o alivio pelo cumprimento do que era, para ele, uma missão da qual não podia fugir. Antes de se perder nas estradas, sendas e veredas sertanejas, antes de se desencaminhar pelo vasto universo dos sertões, não se sabe se impelido pela dor de um sentimento passional, ou se movido por um chamado de outra ordem, abandonaria os resquícios de sua vida anterior.

Seu rigoroso credor, José Nogueira de Amorim Garcia – o Comendador Garcia, ainda por ser vítima de brutal assassinato em 1894, e também merecedor de ser historiado em livro – entrara na Justiça contra Antônio Vicente Maciel por uma dívida de pequena monta. Perdido em sua busca espiritual, ouvidos ensurdecidos aos comandos terrenos, Vicente nem chegou a comparecer à audiência para a qual havia sido citado por duas vezes, pessoalmente, no lugar Várzea da Pedra.

A listagem de seus bens no auto de penhora, detalhada pelo historiador Eusébio de Souza na Revista do Instituto do Ceará de 1912, mostra suas posses. Deixava para trás, qual um morto sem inventário, duas éguas novas, quatro poltros, um novilhote e um bezerro, um relógio de prata desconsertado, com sua descasada corrente de ouro, um colete de fustão, um chapéu de pelo, usado, um paletó de pano fino preto, dois mil reis em dinheiro e dívidas a serem cobradas a três devedores.

Tão triste, essa lista de semoventes, de objetos reveladores de um dono desatento ao tempo e às regras humanas, a lista minguada de vestuários de quem um dia se dera ao trabalho de seguir normas e cumprir leis. Dali em diante seria ele o criador de mandamentos e à sua volta girariam os crentes congregados em Belo Monte. Um Deus magro e miúdo, de cabelos encaracolados e barbas bíblicas, sem um dente na boca para chamar de seu, como confirmado na exumação, vestido em longo camisolão de brim e calçado em alpercatas de sola. Mais um feito, mais um fruto de Quixeramobim.

Angela Barros Leal é jornalista e escritora.

Mais notícias