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Espírito de Natal. Por Angela Barros Leal

Família. Foto: Freepik

Ele mapeia para nós suas tatuagens, como quem mostra um mapa de cicatrizes. Leio, na lateral de cada pé, no pontilhado em letra cursiva, entranhado sobre a pele: “Os pés que Deus me deu”. Com eles chegara até aqui, após mais de meio século de caminhadas. Aponta em seguida, nas panturrilhas musculosas, forjadas por insólitos roteiros percorridos em mais de 50 países, tatuagens tribais idênticas, traçadas em preto e branco.

Wolverine, Homem-Aranha, Capitão América, super-heróis representantes do Universo Marvel se fazem presentes nos braços dele, exercitados pelo peso de câmeras, de acessórios fotográficos, dos seguidos cliques que tranquilizaram o ego ou a insegurança de um número tão grande de top models, cujos nomes ele não se preocupa mais em recordar.

Pois esse homem, com quem repartimos uma refeição coletiva, diz ter sido fotógrafo de grandes publicações de moda – o que ainda pode voltar a ser, se assim desejar. A vida é breve, ele bem sabe. Está aí para ser vivida, para dar a ele o tempo e a saúde que permitam prosseguir nas suas viagens, na exploração das paisagens, no conhecimento de pessoas, e assim continuar agradecendo a Deus por cada dia que nasce, cada sol que se põe.

Nunca vi esse homem antes. Bem provável que nunca mais volte a vê-lo, esse estranho recém-chegado. Entretanto, sinto que entendo do que ele é feito. Identifico, no meio dos grafismos com os quais recobre as partes expostas do corpo, outras frases em escrita cursiva. Ele afasta a gola da camiseta e exibe uma mensagem oculta, delineada sobre a pele que esconde o coração: o Salmo 23 da Bíblia, aquele que prega “O Senhor é meu pastor e nada me faltará”.

Na parte interna do antebraço esquerdo, que estende igual ao braço de Cristo, ao ser cravado na cruz, ele gravou sua afirmação de fé: “Creio em Deus Pai todo poderoso”. A outra frase, tatuada no antebraço oposto, tinha sido a mais fácil de ver, muito embora deva ter sido a mais difícil de experimentar: “O Senhor tira, o Senhor dá”.

Conheço a citação. Pertence ao Livro de Jó, portentoso texto bíblico tratando da importância da fé, trazendo aos nossos sonhos o relincho mortal de cavalos brancos e suas crinas revoltas, a visão de tendas desfeitas, de tempestades torrenciais, as dores do nascimento de estrelas e constelações, o estrondo da voz divina, o trovejar das palavras saídas da boca daquele Deus da ira, o todo-poderoso do Antigo Testamento.

E sei que, na letra da Bíblia, Deus questionara a fé do seu servo Jó, a quem tanto havia sido concedido, e de quem tudo fora tomado: “Tudo que há debaixo dos céus me pertence”, estrondara Sua voz, e mais ardente ainda, ressoando como se anunciasse o dia do Apocalipse, questionara: “Onde estavas, quando lancei os alicerces da Terra? Como se vai ao lugar onde mora a luz? Onde está a residência das trevas?”

Pobre Jó, homem justo e correto, que vira a morte de seus sete piedosos filhos, e de suas três amadas filhas, sem respostas para tão potentes perguntas. Pobre Jó, que testemunhara a hecatombe de seu rebanho de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentos jumentos, quinhentas juntas de boi. Que fora ferido em sua carne e seus ossos, “da sola dos pés ao alto da cabeça”, perdendo o que a ele pertencia, sem conhecer a causa ou a razão para tamanhas penas.

Não renegara seu Deus, não o maldissera. Ao contrário, curvara-se pleno de honesta gratidão. Batera no peito na confissão de culpas que a ele não cabiam. Embrulhado em farrapos, humilhara-se ante os amigos e encontrara ânimo para se prostrar em orações: “Saí nu do ventre de minha mãe, e nu partirei. O Senhor deu, o Senhor tirou”.

Assim como Jó, aquele homem, com quem encontrei por acaso, e por uma única vez, inscrevera à flor da pele as sentenças sagradas da paciência e da serenidade, a aceitação pacífica dos sofrimentos trazidos pela vida. Negara-se a mencionar qual teriam sido suas penas, ou quantas flechas haviam perfurado sua carne. Pusera as dores em uma balança e vira que era certo dar-se a conhecer pela gratidão aos fatos bons que vivenciara, e não pelas tribulações da sua existência.

Embora eu continue parte da legião de criaturas descrentes, dos carentes de fé, dos que invejam, secretamente, quem a possui, a presença passageira desse inesperado portador de mensagens divinas, inscritas na própria carne, abrandou por um tempo o escudo que envolve meu coração ateu. E me deu uma desculpa para assumir, sem queixas, tristezas nem saudades, o espírito agridoce de mais uma véspera de Natal.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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