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Em homenagem a Gilmar de Carvalho, por Paulo Elpídio


A PARTIDA IMPRESSENTIDA DO COLETOR DE ACHADOS E PERDIDOS

GILMAR DE CARVALHO PARTE COM A MESMA DISCRIÇÃO QUE CULTIVOU A VIDA INTEIRA

Esta foi uma perda considerável. Não cabe em um simples registro de ocasião. Foge ao obituário formal, aos elogios de circunstância.

É literalmente uma perda para a Cultura cearense. Foi-se, de leve, ao sopro perverso de uma partida pressentida, o maior e mais talentoso aprovisionador do acervo da nossa memória cultural.

Trabalhador intelectual incansável, esquadrinhou os guardados e perdidos da nossa herança dispersa, na música, na poesia dos estros do povo, entre os mestres dos instrumentos de corda, nas aventuras criativas do romance.

Um almoxarife incomum, recolhedor de coisas esquecidas, ia pelo impulso de pesquisador no encalço da criação e dos criadores, escondidos pela origem simples das suas vidas.

Como caçador de uma arca perdida, valia-se dos poucos vagares para reunir destroços rejeitados e dar-lhes conteúdo e nexo, estudá-los e explicar como passaram a existir. E o fazia como missionário dominado pela sua fé e pela grandeza do desafio sempre renovado.

Dos arquivos, das entrevistas por lugares insuspeitados, sertão afora, na interlocução de artistas que ignoravam o próprio talento e a força da sua inspiração, Gilmar extraía do irrelevante aparente as provas do gênio criativo do homem do sertão. Foi assim que descobriu a palavra, o som e a imagem desses feitores da inspiração.

Ajudavam-no nesta tarefa franciscana, os miúdos de prêmio conquistados, o mecenato do Estado, nem sempre fácil de extorquir para as boas ações inteligentes, e os amigos, mecenas independentes.

Vagava pelas redações dos jornais, pelos seus recantos de Cultura cada vez mais desertos, em busca de uma voz amiga e da divulgação de uma obra civilizatória pouco reconhecida.

Para si, bastavam-lhe os miúdos de professor universitário e a tranquilidade da Maraponga, onde ergueu a sua morada na companhia de uma velha e querida senhora.

Coragem não lhe faltou, nem tempo. Encontrei-o muitas vezes dando trato aos seus escritos, com a cumplicidade de Mauro Gurgel e dos seus programadores gráficos. Bolos-se entre eles, como um auxiliar de tipografia, naqueles tempos heróicos que lembravam as aventuras de Gutenberg em Linz.

Teria merecido, como poucos, as distinções dos sodalícios, tão pródigos na celebração das glórias conferidas e tão parcimoniosos no reconhecimento de talentos invisíveis.

A obra de Gilmar de Carvalho foi construída por mãos inspiradas e trabalhadoras. É legado consistente, à espera de quem se disponha mergulhar no caprichoso tecido de um pesquisador cultural só comparável, nos termos que os associa, a Leonardo Mota, Ariano Suassuna e Câmara Cascudo.

Ficam conosco aqueles traços inconfundíveis que identificavam Gilmar; o porte distinto, cabelos em desalinho, uma sacola sempre cheia de surpresas gratas que fazia aos amigos. A simplicidade de quem cuidava por desculpar-se por deslizes que não cometera. Atento, afinal aos que ouvem não falta o dom da sabedoria, tinha a palavra e a oitava precisa sobre as coisas, as palavras e as intenções.

Da última vez que nos encontramos, na velha Livraria Cultura da dom Luiz, abriu a sacola, com ares de mistério, trouxe dos muitos guardados de lá, um embrulho de presente, mal dobrado, volumoso. Abri-o com um palpite acudir-me de pronto. Lá estava, uma edição espanhola, encadernada do Quijote, objeto recorrente de muitas das nossas conversas perdidas.

Por gentileza sua, tenho toda a sua imensa obra publicada. Um tesouro.

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