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Duplo Festim. Por Angela Barros Leal

Somos cinco amigas à mesa: uma educadora, uma advogada, uma bibliotecária, uma médica, uma jornalista. Há dois anos não nos vemos. Certamente mais de dois anos, talvez três, calcula a responsável por nos ter agregado, enviando insistentes mensagens nas quais considerava revogada a ordem marcial imposta sobre o mundo.

Outras convidadas não vieram ao encontro, agendado para um shopping na Aldeota. Minimizamos as desculpas de última hora, falsamente tranquilizadas, e ecoamos em compreensivo perdão: Ah, sim, claro, é o cuidado com os netos, convenientes escudos humanos para as ausências das avós; são as providências urgentes que necessitam resolução justo hoje, justo nesse horário; é o imprevisto que apareceu, como todos os imprevistos, tão inesperadamente. O óbvio sempre funciona.

Em uma era de domínio masculino sobre as panelas, ousamos conversar sobre culinária, que algumas de nós dominamos com maestria, apesar de leigas, de não ostentarmos diplomas, certificados ou aspirações de cordon bleu. Cozinhamos por amor, por dever, por instinto.

Homens caçam e assam, decretamos. Mulheres cozinham, envoltas nos sudários do vapor que sobe das panelas, enquanto a família impaciente aguarda na sala. Pelo menos, era assim que costumava ser.

Uma de nós alteia a voz um tom acima dos sucos de abacaxi com hortelã, dos crepes light, das omeletes de clara que pedimos com falsa avidez, e que saboreamos agora. Do peixe inteiro, assegura, ela prefere o olho. Algumas de nós demonstram espanto. Outras concordam. Ah, o olho do peixe, salivam essas, enquanto aquelas se contorcem nas cadeiras, em puro desconforto, evitando imaginar o sabor e a textura de um globo vítreo, que guardou na retina o movimento de ondas e marés, de naufrágios e de estrelas no fundo dos mares.

O aceno inicial foi dado. Da galinha há quem valorize os pés, borbulhando em panelões, emergindo para ciscar no ar, como se o fizessem ainda nos terreiros, tão preciosos por esconderem, no amarelo vivo, o segredo do colágeno perdido.  Já o rabo do porco, esse é bem diferente do rabo do boi, explicitam duas de nós. Do porco, o rabo nada mais é que um minúsculo sinal gráfico, acentuando o sabor da feijoada. Do boi é a rabada, delícia dos deuses, afirmativa sobre a qual discordam outras três.

Afiamos os caninos, debruçadas sobre a mesa. O miolo frito do boi, quem gosta, pergunta uma, para espanto de poucas, que nada veem de estranho em cortar, preparar e mastigar o cérebro do animal, devorando sinuosidades e curvas, as saliências e reentrâncias da matéria cinzenta onde estiveram guardadas memórias de pastos verdes, de açudes cheios e de nuvens brancas.

Alguém traz a lembrança a untuosidade do tutano, de alguma forma similar à breve suntuosidade da ostra: gordura gelatinosa embebida no interior dos ossos, extraída com a ponta da faca ou com a boca mesmo, sugada em haustos ruidosos, uma película de sal e óleo vitrificando nas mucosas, revestindo de prazer os dentes, a ponta da língua.

A língua, não esqueçam a maravilha que é a língua, acena outra, passando a própria sobre os lábios encarnados. E o mocotó, as extremidades dos bovinos, as patas que marcharam para a execução em massa, um milagre ter persistido esse costume dos escravizados, ou essa tradição indígena, caminhando de História a fora para nos servir de repasto.

A maioria de nós não se deixa seduzir por docinhos ou sobremesas. Aliás, quase todas desprezamos o açucarado na cozinha e nas conversas. Somos sangrentas, pelo jeito, cinco feiticeiras em noite de chuva, formando um pentagrama no semi-iluminado espaço cavernoso de um restaurante guardado à porta por dois cães Golden Retriever.

Mexemos caldeirões de vísceras e miúdos, revolvemos intestinos, costuramos estômagos, manchamos de sangue as mãos na cabidela, no recheio do sarrabulho. Abandonamos do carneiro só o couro, e do boi só o berro.

Discutimos se a preocupação com a estética, a elegância, a finesse dos detalhes, o uso de termos e expressões em outras línguas, as esculturas criadas no gelo ou na manteiga, as receitas quilométricas, exigindo dezenas de ingredientes exóticos – se esse cuidado nós deixamos a propósito aos homens, aos chefs de cuisine, porque, para nós, qualquer coisa que mate a fome de nossos filhos será sempre abençoada.

O tempo voa e o restaurante está perto de fechar. Os atendentes se apressam no recolhimento dos pratos, pagamos as contas e nos despedimos, prontas para retomar nossos caminhos: até logo, até breve, foi uma alegria, com certeza nos encontraremos de novo. Recolhemos nossas garras, assumimos nosso plácido rosto social. Sobre a mesa, ao final do duplo festim, deixamos apenas os guardanapos, manchados de vermelho sangue.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

 

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