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Direito societário em tempos de Coronavírus, por Uinie Caminha

Uinie Caminha é advogada. Sócia de BMC Advogados. Doutora em Direito Comercial pela USP, professora Titular da pós-graduação da Unifor e Adjunta da Universidade Federal do Ceará. Escreve mensalmente no Focus.jor.

Por Uinie Caminha
ucaminha@bmc.com.br

Epidemias não são exatamente algo novo para a humanidade. Porém, temos enfrentado, com a COVID-19, situações em que jamais estiveram, ou imaginaram, pessoas da minha geração, ou da geração de quem esteja lendo este texto. Ao menos não no Brasil. O que de fato é original nesta epidemia é o excesso de informação, a qualidade (ou falta) dela, e ainda a (in) capacidade das pessoas processar essas informações para a tomada de decisões racionais. Isso é a receita sem erro para o pânico.

Nestes tempos, é normal que se pense mais de maneira “macro”, ou seja, em questões como quantas pessoas adoecerão, dessas, quantas morrerão, como vão sobreviver aqueles que têm que sair de casa para trabalhar.

Todavia, tão importantes são as medidas pontuais para fazer com que as respostas aos grandes questionamentos não sejam tão pavorosas. Assim como em outros setores mais visíveis, o microssistema do Direito Societário viu-se em uma situação especialmente difícil, por se tratar do início do ano, quando devem ser realizadas as assembleias ou reuniões de sócios para aprovar contas, destinar resultado e eleger administradores.

Com efeito, as regras sobre o assunto, dispostas tanto na Lei das Sociedades por Ações quanto no Código Civil, aplicam-se as sociedades anônimas, limitadas e cooperativas, que, juntas, representam quase que a totalidade das sociedades regulares no Brasil. O artigo 132 da Lei 6404/76 determina que anualmente, nos quatro meses seguintes ao término do exercício social, deverá ocorrer a assembleia geral ordinária, que tem competência para tomar as contas dos administradores, examinar, discutir e votar as demonstrações financeiras; deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício e a distribuição de dividendos e ainda eleger os administradores e os membros do conselho fiscal, quando for o caso.

O Código Civil, em seu artigo 1078 – bem menos observado na prática, saliente-se, determina que a assembleia de sócios deve realizar-se ao menos uma vez por ano, nos quatro meses seguintes ao término do exercício social, com objetivos semelhantes àqueles dispostos na LSA. Tendo em vista a quase todas as sociedades brasileiras têm seu exercício social coincidente com o ano fiscal, ou seja, encerrando-se em 31 de dezembro, o prazo para a realização das assembleias encerra-se em 30 de abril do ano seguinte.

Inicialmente, aborda-se um ponto óbvio, que é o fato de uma assembleia implicar, por definição, uma “aglomeração” de pessoas, o que, nestes tempos de pandemia, converteu-se em pecado mortal. Mesmo se considerarmos que a maioria das assembleias não ocorre presencialmente, exceto nas sociedades de maior porte, existe a necessidade de uma esforço para a elaboração das atas, coleta de assinaturas e protocolo que por vezes não pode ser feito remotamente.

Além disso, note-se que para que sejam realizadas as assembleias, é necessário que as contas estejam finalizadas, e, muitas vezes auditadas. Se, em tempos normais, há esforço concentrado de advogados, contadores e auditores para a finalização das contas no prazo – o que nem sempre ocorre, torna-se praticamente impossível quando a maioria desses profissionais está trabalhando por via remota, com dificuldade de acesso a documentos necessários. Diante desse cenário, foi editada, por iniciativa do Ministério da Economia, em 30 de março, a Medida Provisória 931/20, que traz disposições para que se lide com esses problemas invisíveis para muitos, mas que, como tantos outros decorrentes da situação excepcional que vivemos hoje, acabam desencadeando problemas maiores.

Logo em seu primeiro artigo, a MP alonga de quatro para sete meses o prazo para a realização das assembleias de sociedades cujo exercício social tenha terminado entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020. Além disso, a MP expressamente retira os efeitos de disposições contratuais, como aquelas de acordos de acionistas ou quotistas, que exijam a realização das assembleias em prazo inferior ao estipulado pela medida. Matérias urgentes, inclusive a declaração de dividendos, poderão ser deliberadas por administradores (conselheiros ou diretores, conforme o caso), ad referedum da assembleia. Outro solução trazida pela MP diz respeito ao prazo do mandato de administradores que eventualmente encerrasse durante esse período, ficou prorrogado até que se realize a assembleia.

Além disso, até que se restabeleça o atendimento normal nas Juntas Comerciais, o prazo de 30 dias para o arquivamento de atos societários a que se pretenda dar efeito retroativo à data da assinatura, não será considerado. Esse prazo volta a ser contado quando os serviços do registro de comércio volte à normalidade. À essas medidas, que são temporárias, juntam-se alterações relevantes na Lei das Sociedades por Ações e no Código Civil para prever, expressamente, a possibilidade de participação remota em assembleias e reuniões. Essa faculdade já era há muito pretendida, pois mesmo fora desta situação atual de risco de contágio, tem-se uma relevante economia de recursos com essa medida.

Note-se que, no caso das companhias abertas, a Comissão de Valores Mobiliários deverá manifestar-se sobre as formalidades a serem adotadas, no intuito de melhor tutelar o interesse dos investidores no mercado de capitais. Olhar para um microssistema afetado de maneira relevante pela pandemia faz pensar em tantos outros que podem ser imperceptíveis para alguns, mas que, ao final, estão todos interligados e são relevantes para a vida após a doença. A medida foi acertada e veio em boa hora, e certamente contribuirá para que não terminemos, em tempos posteriores ao Coronavírus, como o barco que levava Fermina e Florentino ao final de Amor nos tempos do Cólera… sem rumo.

Live Instagram: A advogada e professora universitária Uinie Caminha fará uma live no @franmartins_ufc, hoje às 18 h, com o tema: “Reflexos do coronavírus sobre o mercado e o direito empresarial: proposições e medidas adotada”. 

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