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Dez lições que aprendi com a Covid-19, por João Flávio Nogueira

João Flávio Nogueira é médico (CRM-CE 9344, RQE 4114), formado na UFC, com residência médica em otorrinolaringologia em São Paulo. Fellowship na Penn University – Philadelphia Membro da Academia Americana de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço Professor convidado do Massachusetts Eye and Ear Infirmary – Harvard affiliate.

Por João Flávio Nogueira

Estamos no começo de julho de 2020 e resolvi escrever esse texto até para não me esquecer desses últimos intensos meses que vivemos todos.

A “guerra” está vencida? Não! Mas já podemos, aqui em Fortaleza, uma das cidades afetadas inicialmente pelo que vou chamar de “primeira onda” da doença no Brasil, ver que estamos na “descida da montanha”, pelo menos dessa primeira montanha que escalamos a duras penas.

A COVID-19, aliás, tem pouco mais de “6 meses” dos primeiros relatos lá na China. E nesses 6 meses muito foi aprendido. E isso, infelizmente, a um preço muito caro em muitos casos, pago com a vida de médicos, profissionais da saúde e pacientes. Muitos erros e acertos foram cometidos.

Mas, nesses pouco mais de 3 meses de doença em Fortaleza, já que o primeiro caso aconteceu em março de 2020 por aqui, podemos dizer que aprendemos muito também.
Vou listar aqui 10 pontos que eu, particularmente, aprendi:

1) Não existe tratamento milagroso. Apesar de termos algumas medicações com evidências clínicas e científicas de eficácia atualmente, como os corticoides, usados em pacientes hospitalizados, ainda não temos a “bala de prata”, uma vacina ou medicação, ou conjunto de medicações que sejam totalmente eficazes no combate dessa doença. Claro que nós, médicos, temos a capacidade de prescrever aquilo que cremos ser o mais útil para nossos pacientes, tanto de forma precoce, quanto em pessoas hospitalizadas em unidades de terapia intensivas. E todo médico, no fundo, quer o melhor para seus pacientes. Muitos de nós até pecamos pelo excesso, com medicações, mas jamais pela omissão ou pela desassistência aos pacientes. E, muitas vezes, essas assistências mais importantes eram uma palavra ou ato de conforto.

2) Cada caso é um caso: esse antigo “chavão” médico foi e é cada vez mais atual e presente no tratamento dos pacientes com a COVID-19. Essa doença pode se apresentar de várias maneiras, desde sintomas típicos de uma síndrome gripal, até diarreias, náuseas, vômitos, alterações na pele e até nos olhos. Os pacientes muitas vezes também apresentam sintomas quase como uma “montanha-russa”. Num dia estão se sentindo muito mal, com dores no corpo, dores de cabeça, febre, dores na garganta e, quase que milagrosamente, no outro dia eles (pacientes) já acordam sem sintoma algum. Mas isso pode ser traiçoeiro, porque logo em seguida, no outro dia, esses mesmos pacientes podem novamente piorar dos sintomas e até mesmo complicar. E cada vez mais médicos e profissionais da saúde estão conscientes e cientes disso.

3) A identificação precoce das complicações tem ajudado: no início nós médicos e profissionais da saúde dizíamos: “se você estiver doente, só procure um médico em caso de falta de ar ou complicações”. No início até entendi essa orientação no sentido de não disseminar a doença, mas creio, olhando agora para trás, que foram condutas equivocadas de todos nós, médicos e profissionais da saúde. Isso fez com que muita gente, por medo, ficasse em casa, mesmo já com sinais e sintomas de complicações. E a identificação precoce desses sinais e sintomas trouxe um melhor entendimento sobre o próprio tratamento da doença. Gosto de dizer que há pouco mais de 3 meses a doença estava na nossa frente. Mas agora, com o conhecimento que adquirimos, podemos estar sim à frente da doença, principalmente nesses pacientes com potencial de complicações. E, neles, agir precocemente, antes deles complicarem, com tratamento com medicações anti-coagulantes, anti-inflamatórias potentes (como os corticoides) e outras. Hoje sabemos, com exames complementares e exame clínico do paciente, e com parâmetros que antes não fazíamos de rotina, como avaliar a saturação de oxigênio no sangue dos pacientes através do oxímetro de pulso, avaliar melhor aqueles que potencialmente podem complicar.

4) A estrutura hospitalar é fundamental: isso salvou vidas! Não tenho dúvidas que a preparação que os hospitais (públicos ou privados) fizeram com a expansão de leitos e equipamentos foi fundamental para salvar muitas vidas no Brasil. Houve várias denúncias de corrupção em vários lugares do Brasil. Defendo que todas essas denúncias sejam apuradas e, caso comprovadas, os envolvidos sejam severamente punidos, mas o aumento da rede salvou vidas! Tivemos a “sorte” geográfica de sermos um dos últimos locais do planeta atingidos pela pandemia e pudemos aprender com os acertos e erros de outros países. O uso de medicações e as avaliações de complicações não seriam suficientes se, por trás de tudo isso, não houvesse uma estrutura hospitalar pronta para aceitar esses pacientes quer sejam aqueles com quadros moderados, mas, principalmente, os graves.

5) Material humano é essencial: também de nada adiantava uma estrutura que poderia ser até magnífica, com todos os equipamentos necessários, se não houvesse material humano (médicos, enfermeiros, auxiliares, etc) que os pudessem usar e operar para garantir um atendimento essencial para os que necessitassem. E nós, médicos, soubemos aprender na prática com a doença, sem perdermos, entretanto, nossa humanidade. Eu confesso que muitas vezes esmoreci nesses 3 meses. Em maio, particularmente no dia 13, eu chorei. Atendi muitos pacientes com a doença nesse dia e tive a impressão que o sistema de saúde não suportaria aquela demanda gigante de casos. Tive medo também de morrer, mas nessa “guerra” nós médicos e profissionais da saúde, fomos e somos soldados dispostos sempre a ajudar. Muitos profissionais de saúde padeceram nessa batalha, muitos anônimos, tal qual o “soldado desconhecido”. Mas tenho a certeza que nós combatemos um bom combate, sempre em busca da vida e de aliviar o sofrimento daqueles que mais necessitaram. Desde que entrei na Faculdade de Medicina tive orgulho da minha profissão. Depois desses 3 meses tenho ainda mais!

6) Politizar tratamentos atrapalha: a ciência foi e deve ser nosso Norte. Mas a política entrou de uma forma tal nessa pandemia que pessoas usavam ou não medicações não porque elas (as medicações) fossem boas ou não, mas porque político A ou B as indicava ou contra-indicava. O fato de políticos não médicos “indicarem” (possivelmente até na melhor das intenções) tratamentos, mais atrapalhou que ajudou.

7) E falando em politizar, as medidas de restrições sociais, também indevidamente politizadas nesse “embate” que jamais poderia existir entre “economia e saúde”, foram fundamentais para esse combate à pandemia. Sem essas medidas, mesmo que aqui grande parte da população não as tenha seguido rigorosamente, creio que teríamos muitos mais mortos. A população aprendeu nomes novos como “quarentena”, “lock-down”, medidas difíceis, principalmente em se tratando de um povo caloroso como o nosso em que o contato social é algo primordial e importante nas nossas comunidades, mas que se mostraram fundamentais. Claro que num país desigual como o nosso houve também pessoas que não tiveram a capacidade de ficar isolados, sem trabalhar, por semanas ou meses. Mas, mesmo essas pessoas, em algum momento, fizeram algum distanciamento social que, na minha visão, ajudou bastante.

8) “Fake News” matam! Pra mim, particularmente, atender pacientes com a doença não foi o principal problema. O principal problema, aquilo que me tirava o sono ou a paciência eram as “fake News” ou notícias falsas ou, como costumo dizer, “notícias truncadas”, aquelas em que há alguma verdade embutida em várias notícias falsas. Na era das redes sociais e WhatsApp isso tomou uma proporção gigantesca. E o pior: muitas vezes os “disseminadores” dessas “fake News” eram próprios médicos. De início tentei até rebater algumas dessas notícias em grupos de família, do condomínio. Mas vi que isso estava tomando muito do meu tempo que poderia ser utilizado vendo pacientes. Tenho a convicção que “fake News” e teorias conspiratórias diversas mataram muitas pessoas nessa pandemia. Isso sem falar nos diversos “especialistas” formados nos cursos rápidos de “achismo empírico” da WhatsApp University!

9) Transparência sempre! Até para evitar essas “fake News” a transparência com os números da doença, com as formas de tratamentos possíveis que pudessem minimizar problemas maiores, e até com as duras realidades que muitas vezes aconteceram nesse período deveria ter sido fundamental. Mas, infelizmente, não foi. Desde o começo! Até houve alguns gestores públicos e privados que se sobressaíram nessa transparência, mas, via de regra, nossos gestores não praticaram uma comunicação direta, honesta, inteligível e transparente com a população. E isso atrapalhou e ainda atrapalha!

“La Peste à Rome” — Jules-Élie Delaunay (1859)

10) E, por último, a esperança sempre vence! A humanidade chegou até o ano de 2020 vencendo todos os desafios a ela postos. Já vivemos pandemias anteriores, guerras devastadoras, mas sempre vencemos! E isso, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer também com a COVID-19. Vencemos essa “guerra”? Ainda não, mas, pelo menos aqui em Fortaleza, creio estarmos mais perto que longe do fim. Teremos segunda onda? Não sei! Mas sei que, se tivermos uma segunda, terceira ou até quarta ondas, nós, médicos e profissionais da saúde, estaremos sempre aqui, a postos, para ajudar sempre, fazendo o que aquilo que melhor sabemos: cuidar das pessoas!

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