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Decifrando a violência

Rui Martinho é professor da UFC, advogado, bacharel em administração, mestre em sociologia e doutor em história. Com 6 livros publicados e vários artigos acadêmicos na área de história, educação e política. Assina coluna semanal no Focus.jor.

Por Rui Martinho Rodrigues
rui.martinho@terra.com.br
A criminalidade, tanto na modalidade violenta como de punhos de renda, alcançou níveis intoleráveis. O debate sobre a tragédia que isso representa é oportuno, por mais repetido que seja. É preciso decifrar o mecanismo que gera o fenômeno. Conflitos resultam de pretensão resistida. Ambas as atitudes podem resultar do interesse material, do campo dos valores ou da paixão. Os caminhos pelos quais se soluciona a colisão entre a reivindicação e o obstáculo por ela encontrado são: renúncia de uma das partes; transação, entendida como renúncia parcial e mútua negociada; mediação, na forma de entendimento entre as partes, obtido com ajuda de terceiros; arbitragem, compreendida como solução decidida por terceiros e aceita por ambos os lados; judicialização do conflito. Quando tudo isso não funciona resta a autotutela, que é a solução imposta por uma das partes, valendo-se de seus próprios meios.
A renúncia e a transação podem resultar do reconhecimento: da pretensão ou da resistência do outro como legítima; da tolerância magnânima; do pragmatismo de quem reconhece a conveniência de uma solução mais vantajosa que um conflito; ou da submissão inconformada, mas que se reconhece impotente. Aceita o direito do outro ou faz concessão, no todo ou em parte, quem respeita a lei, os costumes e os coloca acima dos próprios interesses materiais e das paixões ou respeita os valores do outro. Temos uma sociedade violenta. Não reconhecemos a legitimidade da pretensão ou da resistência do outro e não temos longanimidade. Não optamos pela renúncia ou a transação considerando a conveniência dos resultados práticos, como a paz.
Conflitos se instalam na ausência de mediação e arbitragem. Houve um tempo em que diante de uma situação potencialmente conflitante fazia-se a advertência: vou a tua mãe. Na escola o menino podia comunicar ao professor. Já não temos mediadores nem árbitros em nosso meio social. As partes não têm a quem apelar na parentela, na vizinhança e até nas instituições, principalmente nas escolas. Resta a intervenção do Estado, depois que os pais e professores ficaram intimidados diante de uma possível intervenção do Conselho Tutelar. O nosso ordenamento jurídico confia mais na burocracia do Estado do que nos pais. Assim chegamos ao policial e ao juiz. O primeiro não tem autoridade para arbitrar conflitos, limitando-se a conter as práticas agressivas ou a intervir depois que a violência é praticada. O juiz só age quando provocado e em muitos casos a população não busca a tutela jurisdicional por nela desacreditar. É compreensível: a justiça anda a passo de lesma reumática, conforme já se disse, assoberbada pelo excesso de demandas, retardada pela burocracia de um direito processual que eterniza os processos e pela incúria dos recursos humanos do aparato judicial, cuja elevada qualificação técnica não tem resultado em prestação jurisdicional célere, a começar pelo Pretório Excelso.
A pós-moralidade, de que falou Giles Lipovetsky (1944 – vivo) não inspira renúncia magnânima, nem transação baseada no respeito ao direito ou valor do outro. Aprendemos a desqualificar os conceitos dos quais discordamos como “preconceito” e a odiar a resistência aos nossos desígnios, atribuindo a ela o ódio que sentimos e praticamos.
Resta a autotutela, encorajada pela impunidade, em meio a proliferação de conflitos multiplicados pela mudança cultural rápida e profunda; pela fragilidade dos laços sociais; pela perda de prestígio dos mediadores e árbitros tradicionais; pela anomia da era pós-moral. Os sessenta e três mil homicídios em apenas um ano resultam disso. Políticas de segurança, ao lado de outras políticas públicas, poderão produzir algum resultado, mas a tendência para a violência continuará forte enquanto perdurar a situação descrita. Leis que ao invés de legitimar o costume procuram introduzir transformações histórica, copiando práticas alienígenas, só agudizam o problema. O conflito nasce das expectativas contrariadas nas relações humanas. A mudança cultural profunda e rápida só promove a frustração das expectativas aludidas.
 

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