Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

Da denúncia à esperança, por Raquel Machado e Jéssica Teles

Foto: Dia Internacional de Luta das Mulheres #8M – 08/03/2018 – Brasília (DF) – Mídia Ninja CC BY-NC-SA 2.0

A participação política da mulher tem sido uma pauta jurídica presente em importantes julgamentos da Justiça Eleitoral nos últimos anos. É possível observar, desde 2015, uma série de avanços na proteção desse direito.

O Direito, como sistema normativo, possui fontes, formais e materiais, que o mantêm interligado com a realidade social sobre a qual incide. Essa permeabilidade permite a evolução da proteção jurídica de valores em sincronia com o ideal de justiça preponderante na sociedade.

A exclusão da mulher do espaço público não faz mais parte do discurso legítimo. Contudo, a simples concessão de direitos formais ao gênero feminino, sabe-se, não é ainda suficiente para a constatação de um quadro empírico de igualdade, construído através de um processo.

Alcançar a igualdade jurídica, em situações cuja assimetria fática provem de fatores históricos, culturais, políticos e ambientais, por exemplo, exige esforços contínuos quando há vontade de se chegar ao “deve-ser” pretendido pela norma.

Em relação à participação política da mulher, e sua proteção jurídica, tem se notado avanços, desde os anos 90, mas foi, sobretudo, a partir de 2015, que esses avanços passaram a acontecer para além da fonte legislativa e doutrinária (proveniente da Ciência do Direito), alcançando, também a fonte jurisprudencial.

É possível notar uma evolução na proteção jurídica da participação política da mulher a partir do tratamento do tema pelos tribunais superiores (TSE e STF), o qual buscaremos sintetizar a seguir:

  • a) Em 2015, após voto-vista da então Ministra do TSE, Luciana Lóssio, passou-se a reconhecer a possibilidade de essa modalidade de fraude ser investigada tanto em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, como em Ação de Investigação Judicial Eleitoral[1]. A prática desse tipo específico de fraude nominamos de “abuso de poder político-partidário”[2].
  • b) Em 2018,  na ADI 5617, o STF estabeleceu interpretação conforme ao art. 9º da Lei nº 13.165/2015, passando a ser obrigatória a destinação, às candidatas, de recursos do Fundo Partidário na proporção das candidaturas femininas lançadas pelo partido, as quais devem ser 30% (trinta por cento), no mínimo, das candidaturas efetivamente requeridas pela agremiação[3].
  • c) Seguindo as mesmas razões e fundamentos do STF, ainda em 2018, o TSE, interpretando a legislação eleitoral, fixou entendimento de que políticos deverão reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para candidaturas femininas, nas mesmas proporções. Essa reserva também foi estendida ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV[4].
  • d) Em 2019, o TSE, no REspeº nº 193-92.2016.6.18.0018, passou a debater sobre os efeitos jurídicos do reconhecimento da fraude de candidatura em AIME e AIJE, em um caso envolvendo o município de Valença, no Piauí. Foi fixada tese pela cassação de todos os candidatos eleitos[5].

Em relação ao ano de 2020, para o qual estão previstas as eleições municipais, pode-se dizer que o mesmo iniciou com a esperança de que esses avanços no Direito poderiam trazer um quadro de mais igualdade para as mulheres na política. Contudo, o isolamento social em razão da pandemia do Covid-19 interrompeu sonhos e projetos; alguns deles envolvendo mulheres que estariam, nesse momento, em campo, construindo e desenvolvendo seu capital político para, em agosto, caso tivessem o apoio do partido, formalizassem sua candidatura.

As consequências do isolamento em novas campanhas e nomes para a política precisarão de tempo para serem melhor averiguadas, mas, de antemão, sabe-se que tendem a ser mais cruéis para aqueles(as) cuja carreira política ainda está em construção. Tal contexto certamente, manterá – ou piorará – o atual estado das coisas, considerando que o isolamento está afetando, de forma mais intensa, as mulheres, sobretudo pelos múltiplos papeis que desempenham, e pelo aumento de demanda nas atividades domésticas[6].

Em meio às denúncias que esse momento delicado nos convida a fazer, ainda há esperança, muito embora para um futuro ainda bastante incerto.

O TSE, fortalecendo a proteção jurídica da participação política da mulher, respondeu à consulta (CTA 0603816-39) que lhe foi formulada e fixou interpretação no sentido de que a regra garantista da reserva de gênero, na proporção mínima de 30%, também deve incidir sobre a constituição dos órgãos partidários, como comissões executivas e diretórios nacionais, estaduais e municipais[7].

A ausência de democratização intrapartidária já havia sido denunciada, por uma das autoras deste escrito, como uma das causas para a baixa eleição de mulheres.

Ausente dos cargos de direção das agremiações, que decidem todas as atividades e prioridades partidárias,  a perspectiva da mulher acaba não sendo incorporada à política intrapartidária, a qual continua a perpetuar as barreiras e obstáculos invisíveis às mulheres, no processo eleitoral.

O partido é o filtro institucional entre a sociedade civil e aqueles que desejam representá-la. Se há vícios e problemas de representação nesse processo de “filtragem político-partidária”, primeira experiência democrática-eleitoral em que se estabelece a deliberação e a votação, entre os(as) filiados(as), sobre quem irá concorrer em nome da agremiação, certamente esses complicadores irão se transpor para a disputa eleitoral cuja decisão ficará a cargo dos eleitores que, sequer, percebem já nascer, essa corrida, assimétrica. A igualdade participativa, tão difícil de ser mensurada pelas variáveis envolvidas, parece iniciar com distorções entre os candidatos(as). Esse é um ponto que precisa ser visibilizado por qualquer debate teórico sobre o tema.

Por isso a importância da fixação desse entendimento para o direito à participação política da mulher, pois antecipa, cada vez mais, a proteção jurídica desse bem, agora para uma fase anterior do processo eleitoral. O cumprimento das cotas de gênero será exigido da instituição para a qual, atualmente, a Constituição concede, também a reserva, do oferecimento das candidaturas. A reserva de espaços para atores políticos, com o fim de garantir o funcionamento das instituições, parece ser uma ferramenta da democracia.

A decisão não afronta a autonomia partidária, vez que esta só se realiza e é legitima no respeito e na realização dos direitos fundamentais e do Estado Democrático. Inclusive, sobre o tema, o ex-Ministro do TSE, Henrique Neves, reforça esse compromisso dos partidos com a democracia, na Instrução nº 03, de 1995: “não como se conceber que em uma democracia  os principais atores da representação popular não sejam, igualmente, democráticos”[8].

Apesar da ausência de resposta clara sobre se haveria sanção ou não para os órgãos que não seguissem essa determinação, o TSE fixou que decidirá sobre os pedidos de anotação dos órgãos de direção partidária de legendas, caso a caso.

A decisão reforça a função político-social dos partidos políticos que, hoje, apresentam os maiores entraves ao exercício da plena participação política da mulher. As mulheres são imprescindíveis na articulação e execução dos programas das agremiações.

Importante frisar que, atualmente, quase metade das filiadas às agremiações estão exercendo forte atuação na militância (política informal), sem que esses números se reflitam nos cargos de chefia. Só para se ter uma ideia, no Ceará, em novembro de 2019, havia o registro de 31 órgãos de partidos políticos e apenas duas mulheres ocupavam cargos de direção máxima, não obstante dos 526.549 filiados, 47,52% fossem mulheres.

A denúncia de distorções políticas e sociais, verificada no mundo dos fatos, é uma ferramenta que força a reflexão do sistema jurídico sobre suas próprias normas e sobre a capacidade desse sistema de aproximar o ser do deve-ser. É o que tem se observado, em relação ao problema da sub-representatividade da mulher.

A esperança está na contribuição que as normas jurídicas, e toda sua potencialidade, podem fornecer para o problema das disparidades de gênero, na política, para se transitar da denúncia à esperança, permitindo que, no horizonte democrático, possamos vislumbrar a luz da igualdade.

Referências

ALMEIDA, Jéssica Teles de. A proteção jurídica da participação política da mulher: fundamentos teóricos, aspectos jurídicos e propostas normativas para o fortalecimento do modelo brasileiro. Fortaleza: FADIR, 2018. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2018.

ALMEIDA, Jéssica Teles de.; MACHADO, Raquel Ramos Cavalcanti. Abuso de poder político partidário e as fraudes às cotas de candidatura por gênero. In: FUX, Luiz; JÚNIOR, Antônio Veloso Peleja; ALVIM, Frederico Franco; et. al. (Org.). Direito Eleitoral – Temas Relevantes. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2018, v. 1.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Fundo Eleitoral e tempo de rádio e TV devem reservar o mínimo de 30% para candidaturas femininas, afirma TSE, 22 de março de 2018. Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Maio/fundo-eleitoral-e-tempo-de-radio-e-tv-devem-reservar-o-minimo-de-30-para-candidaturas-femininas-afirma-tse>. Acesso em 23 de maio de 2020.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Plenário mantém cassação de vereadores envolvidos em caso de candidaturas fraudulentas no Piauí, 17 de setembro de 2019. Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Setembro/tse-mantem-cassacao-de-vereadores-envolvidos-em-caso-de-candidaturas-fraudulentas-no-piaui>. Acesso em 23 de maio de 2020.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. TSE entende ser aplicável reserva de gênero para mulheres nas eleições para órgãos partidários, 19 de maio de 2020. Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Maio/tse-entende-ser-aplicavel-reserva-de-genero-para-mulheres-nas-eleicoes-para-orgaos-partidarios>. Acesso em 23 de maio de 2020.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Instrução nº 3 (750-72.1995.6.00.0000). Rel. Min. Henrique Neves. DJ 12/12/2015.

DUARTE, Joana das Flores. Gênero, quarentena e Covid-19: por uma crítica ao trabalho doméstico. Disponível em < https://www.clacso.org/genero-quarentena-e-covid-19-por-uma-critica-ao-trabalho-domestico/>. Acesso em 23 de maio de 2020.

[1]BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 1-49.2013. Recorrente: Coligação Vitória Que o Povo Quer e outro. Recorridos: José Luiz de Souza e outros. Relator: Ministro Henrique Neves. Publicado no DJe-TSE, data 21/10/2015.

[2] ALMEIDA, Jéssica Teles de.; MACHADO, Raquel Ramos Cavalcanti. Abuso de poder político partidário e as fraudes às cotas de candidatura por gênero. In: FUX, Luiz; JÚNIOR, Antônio Veloso Peleja; ALVIM, Frederico Franco; et. al. (Org.). Direito Eleitoral – Temas Relevantes. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2018, v. 1.

[3] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Doações anônimas e Fundo Partidário para campanhas eleitorais femininas na pauta desta quinta-feira. 15 mar. 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=372325>. Acesso em: 23 de maio de 2018.

[4] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Fundo Eleitoral e tempo de rádio e TV devem reservar o mínimo de 30% para candidaturas femininas, afirma TSE, 22 de março de 2018. Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Maio/fundo-eleitoral-e-tempo-de-radio-e-tv-devem-reservar-o-minimo-de-30-para-candidaturas-femininas-afirma-tse>. Acesso em 23 de maio de 2020.

[5] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Plenário mantém cassação de vereadores envolvidos em caso de candidaturas fraudulentas no Piauí, 17 de setembro de 2019. Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Setembro/tse-mantem-cassacao-de-vereadores-envolvidos-em-caso-de-candidaturas-fraudulentas-no-piaui>. Acesso em 23 de maio de 2020

[6] DUARTE, Joana das Flores. Gênero, quarentena e Covid-19: por uma crítica ao trabalho doméstico. Disponível em < https://www.clacso.org/genero-quarentena-e-covid-19-por-uma-critica-ao-trabalho-domestico/>. Acesso em 23 de maio de 2020.

[7] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. TSE entende ser aplicável reserva de gênero para mulheres nas eleições para órgãos partidários, 19 de maio de 2020. Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Maio/tse-entende-ser-aplicavel-reserva-de-genero-para-mulheres-nas-eleicoes-para-orgaos-partidarios>. Acesso em 23 de maio de 2020.

[8] BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Instrução nº 3 (750-72.1995.6.00.0000). Rel. Min. Henrique Neves. DJ 12/12/2015.

 

Profa. Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado: advogada e professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará. Chefe do Departamento de Direito Público da FD-UFC. Professora-Orientadora do Grupo Ágora (UFC).

Profa. Jéssica Teles de Almeida: advogada e professora de Direito Eleitoral e Direito Administrativo da Universidade Estadual do Piauí. Coordenadora do Curso de Direito da FIED. Pesquisadora do Grupo Ágora (UFC).

Mais notícias