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Cruzando as margens de "O Vermelho e o Negro", por Leopoldo Cavalcante

Leopoldo Cavalcante, cearense de Fortaleza, é criador/autor do @resenhador e articulista de cultura do Focus. Estuda Jornalismo na Cásper Líbero (SP) e Direito no Largo São Francisco (USP).

Um dos divisores de água na minha formação humana foi O Vermelho e o Negro (1830), clássico de Stendhal, nom de plume de Henri-Marie Beyle. Não à toa, quando, em 1934, um jovem escritor bateu à porta de Ernest Hemingway, à época, o escritor que eu mais lia, pedindo conselhos e indicações de leituras, esse livro estava na lista, atrás apenas de dois livros do Stephen Crane, de Madame Bovary (Flaubert) e de Dublinenses (Joyce). O Vermelho e o Negro foi um romance de época. Contemporâneo a si, não recebeu a devida atenção dos seus pares. Balzac fora um dos poucos que percebeu a grandeza de Stendhal. No século seguinte, o meu atual escritor de cabeceira, Jorge Luis Borges o chamou de “um dos maiores romances de todos os tempos”. Eu não sabia de nada disso quando comecei a lê-lo. E, no auge da minha arrogância juvenil, achava um porre, um romance mal escrito do século dezenove cheio de detalhes e adjetivos descartáveis. Apenas o tempo pode diluir a impaciência e a burrice ingênua da juventude.
A história conta a ascensão social do jovem Julien Sorel, um garoto ambicioso de uma cidadezinha numa França conflituosa. Filho de carpinteiro no começo do século XIX, Julien não tinha o espirito do tempo a seu favor. A ascensão social em uma sociedade solidificada em tradições – mesmo que essa estivessem em constante xeque, como era o caso da francesa –  só poderia vir por conquistas militares ou pela entrada na vida eclesiástica. Tendo uma mente prodigiosa, Julien memoriza passagens da Bíblia com facilidade, estuda os clássicos da exegese teológica, as ciências naturais e humanas, mete-se com o exército e com o clero, começando sua jornada até a high-society francesa.
A grandeza de Stendhal está no recorte psicológico do seu personagem. Por dentro, Julien acumula conhecimento com o objetivo de impressionar os que estão ao seu redor – sem aborrecê-los, no entanto – e conseguir a ajuda de alguma figura importante para ter cargos socialmente relevantes. No começo do livro, a frieza de pensamento de Julien é explicitada no seu desdém em memorizar a Bíblia (em latim). Para ele, que deixa claro não se importar com a existência de Deus, ela seria apenas um instrumento para seduzir os “peixes grandes” da sociedade.
Peço licença para uma pequena digressão. O ateísmo de Julien não é de todo por acaso. Nietzsche, em Ecce Homo, já se questionava da própria inveja ao ateísmo honesto (seja lá o que isso signifique) de Stendhal. Relembro uma piada do escritor francês: “a única desculpa de Deus é o fato de não existir”. O sarcasmo secular dos franceses tem algumas consequências particulares n’O Vermelho e o Negro. Mesmo Julien tendo um apreço por Napoleão Bonaparte, o rumo da sua vida segue um caminho bem diferente da paranoia nietzschiana de Super-Homem. Ainda vou abordar com mais calma adiante esse ponto, mas a incapacidade de controlar as emoções – talvez o maior pré-requisito para a supressão da moral tradicional – de Julien o condena. Algo, veja só, mais próximo da visão judaico-cristã de falibilidade humana. Um século antes, o filosofo inglês e cético moderado (que alguns apontaram como ateu) David Hume havia escrito: “Os sentimentos do nosso coração, a agitação das nossas paixões, a veemência das nossas afeições, dissipam todas as suas [dos filósofos abstrusos] conclusões e reduzem o profundo filósofo a simples plebeu”[1]. Essa não-tão-pequena digressão, que finalizo agora, teve apenas o objetivo de reiterar o óbvio ululante, que precisa ser repetido em tempos de puritanismo religioso tacanha: ateísmo não tem nada a ver com uma visão de mundo “revolucionária” ou “subversiva” ou “de esquerda” (seja lá o que isso signifique). Com o golpe militar de 64, O Vermelho e o Negro foi queimado no Rio Grande do Sul por ser um livro subversivo. Espero que nossa democracia liberal não tenha de passar por essa vergonha novamente. De volta ao livro.
Como falei, Julien vai dar aulas. Ele começa sua jornada na casa do prefeito de Verrières, Sr. de Rênal. O conflito entre razão e emoção se dá quando ele se apaixona pela esposa do prefeito, a Sra. de Rênal. Em algum momento, a camareira Elisa, quem se pretendia casar com Julien Sorel, descobre o adultério e conta para a cidade. Disso, decorre de uma carta anônima chegar às mãos do prefeito, revelando o caso extraconjugal. O cura Chélan que havia ajudado Julien a conseguir o posto de professor na casa dos de Rênal, transfere-o para um seminário em Besançon. Lá, ele cai nas graças do abade jansenista Pirard, diretor do seminário. Grosso modo, a linha dos jansenistas era odiada pela Igreja, irritando o abade Pirard, que abandona o seminário. Refletindo sobre as consequências negativas que sua ausência no seminário poderia causar a Julien, seu protegido, o abade o recomenda para ser secretário do Marquês de La Mole. Nesse momento, acaba o Livro I.
A segunda parte do romance se passa em Paris, com um talentoso Julien transitando pela alta sociedade. Todavia, os nobres ao seu redor o menosprezam pela sua origem plebeia. Uma dessas nobres é a filha do Marquês de La Mole, Mathilde, perturbada entre o desejo de casar com a pessoa que ela ama, Julien, e alguém de sua classe social. Disso decorrem fatos trágicos na vida de Julien que eu não vou contar porque seria spoiler, mas que criam o final mais impactante e inesquecível da literatura francesa.
Visconde de Cairu uma vez disse que no mundo não há cousa mais fértil do que uma ideia má. A fé no conhecimento racionalizada em ascensão feita por Julien tinha um caráter artificial. Seu cálculo não levava em consideração a própria complexidade da natureza humana e da nossa falha cognição. Pessoalmente, sofri desse mal por um bom tempo. A busca por algo maior usando apenas de um hiperracionalismo e uma fome pantagruélica por sabedoria não me trouxe respostas, apenas dúvidas. Dúvidas que me inquietaram, me paralisaram e que ainda não consegui podar por completo seus efeitos. Stendhal me ajudou a entender que não se pode ter medo do escuro quando cada novo pedaço de conhecimento é apenas um fósforo acendido para mostrar o negrume ao nosso redor. Sabemos pouco. E, retomando Hume, quanto mais bem estruturadas forem nossas filosofias, mais rápidas elas irão se derreter à luz do sol.
Claro que a emoção por si só não nos levará a lugar algum. Não consigo razoavelmente defender isso. Mas muito menos a razão pura irá nos conduzir, como indivíduos, a algo superior às nossas falhas. Defender uma via mediana entre as duas seria tolice; não acredito que temos a capacidade de controlar-nos pragmaticamente nesse caminho. Minha interpretação de O Vermelho e o Negro me leva a crer que Julien Sorel não entendeu que o homem está em um barco que não pode ficar navegando em apenas uma costa do rio. Em algum momento, a correnteza da vida, quase aleatoriamente, irá jogá-lo para o outro lado, e é bom que esteja preparado. E não, o barco não tem remo. Portanto, tente não afundar tão cedo e aproveite a viagem.
[1] – As passagens citadas de Hume foram extraídas do livro Investigação sobre o Entendimento Humano.

Leopoldo Cavalcante
leopoldocavalcante@focus.jor.br

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