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Continuidade nas mudanças

Rui Martinho é professor da UFC, advogado, bacharel em administração, mestre em sociologia e doutor em história. Com 6 livros publicados e vários artigos acadêmicos na área de história, educação e política. Assina coluna semanal no Focus.jor.

Por Rui Martinho
rui.martinho@terra.com.br
A vida cultural brasileira é marcada pela continuidade nas mudanças. Estas circunscrevem-se mais ao campo das aparências. Os jesuítas lançaram as bases da nossa educação. O Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho, 1699 – 1782) os expulsou, em 1759. A semente plantada pelos seguidores de Inácio de Loyola permaneceu após a expulsão. Todos eram ex-alunos deles. A bibliografia estudada era produzida ou aprovada e indicada pelos mestres que haviam partido.
A educação jesuítica era a expressão da contra reforma. Tinha raízes no concílio de Trento (1545 – 1563), seus valores e concepções eram baseadas em dogmas. Tinha espírito missionário, messiânico. Sendo uma ordem fundada por um soldado, tinha um forte espírito guerreiro. Guerreava os dissidentes, hereges identificados com as reformas do século XVI; proponha-se a catequisar bárbaros pagãos. Caso estes resistissem passavam a ser categorizados como hereges e como tal perseguidos. A fogueira era o destino dos representantes do mal. A ordem, encarnação do bem, tinha legitimidade para imolar recalcitrantes.
Disciplinados, os jesuítas não se envolviam com as práticas mundanas do clero secular, ou não se tem registro disso. Sentiam-se puros e superiores. Mas a palavra jesuíta foi dicionarizada como “…membro da Companhia de Jesus, (…) aquele que é dado a intrigas; dissimulado, hipócrita, (…)” (dicionário do Antônio Houaiss). A presunção de superioridade, própria de quem se acha na posse da verdade, lutando contra o mal e por um mundo melhor, não imuniza contra algumas práticas reprováveis. Expulsos os jesuítas, a nossa educação continuou confessional, dogmática e catequética. As mudanças introduzidas por outras ordens não foram uma ruptura, embora tenham relaxado a disciplina, escancarando o mundanismo.
A influência do iluminismo tardio chegou no século XIX. A influência francófona na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em São Paulo, e na Escola Militar, no Rio de Janeiro. Os germanófilos inicialmente dominaram na Faculdade de Direito do Recife, sob a influência de Tobias Barreto (1839 – 1889). Ambas as tendências, uma positivista, a outra predominantemente culturalista, romperam com a orientação escolástica, que por sua vez representava uma derivação da patrística. Chegou então o iluminismo tardio, com o cientificismo dogmático, a presunção de encarnar o progresso entendido como um mundo melhor e assim continuava catequético. Principalmente o positivismo, vendo no desenvolvimento cognitivo o motor do progresso e na ignorância o atraso, pretendia impor a evolução histórica sem ouvir os ignorantes (hoje se diz alienados), agindo em nome da verdadeira consciência, conscientizando como a velha catequese dos jesuítas. O ódio entre positivistas e católicos não impediu a manutenção do espírito do jesuitismo no positivismo que se julgava tão diferente.
A conversão da intelectualidade ao positivismo foi súbita e massiva. O complexo de vira-lata, de que falava Nelson Rodrigues (1912 – 1980), deixa os nossos intelectuais esperando novidades vindas da Europa, as quais se rendem acriticamente. Todos eram escolásticos, mas tornaram-se positivistas num abrir e fechar de olhos. Depois veio o materialismo histórico, dizendo-se antípoda do positivismo, com quem guerreava. Mas ambos eram dogmáticos, não em nome da Igreja, mas de ideias cientificistas e historicistas; lutavam pelo que entendem ser progresso ou mundo melhor contra o que julgam atraso. Houve o tempo dos hereges e pagãos. O positivismo os substituiu por ignorantes e obscurantistas. O materialismo histórico trocou os nomes por alienados e reacionários. A aparência mudou, a narrativa também, mas a essência nem tanto. A salvação da alma, a ilustração e a luta de classe se substituíram na aparência. Uns eram missionários, outros agentes do progresso, outros ainda revolucionários sob diversos entendimentos do que seja isso.
Ainda temos mais do mesmo. A intolerância, o desespero diante da alternância de poder, a demonização do outro, a autoimagem angelical de quem sente ira santa e percebe o sentimento do outro como ódio satânico vem de uma longa tradição histórica. A conversão ao materialismo histórico também foi súbita e massiva. Houve quem explicasse o comportamento camaleônico como decorrente da indigência teórica dos nossos intelectuais, que não sabem resistir ao proselitismo importado da Europa. O fenômeno, porém, envolve muito mais fatores.

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