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Constituição, leis e Lava Jato – "O ocaso do império" da legalidade, por Martonio Mont’Alverne

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é graduado em Direito pela Unifor, Mestre em Direito e Desenvolvimento pela UFC e Doutor em Direito pela Johann Wolfgang Goethe-Universität, em Frankfurt. Ensina na Unifor e é procurador do município de Fortaleza.

A legalidade é uma conquista consolidada pela modernidade iluminista contra abusos dos que exercem o poder político. Não sem razão que os primeiros direitos incluídos pela legalidade dizem respeito à limitação de tributar e à liberdade de ir e vir. A legalidade foi instituída não somente porque é boa em si, de forma abstrata e autônoma. Mas, como nos socorre Baruch de Spinoza, porque ela é boa para mim e para todos. Eis a razão a fazer com que a legalidade seja boa: apoiamos a legalidade porque ela nos apetece.
A história não cansa de cobrar o preço das tragédias ocorridas no passado distante e recente quando se resolve violar a legalidade pactuada, ou seja, quando se relativiza o que a legalidade não relativizou. Pode-se dizer que quem violou a legalidade, ainda que alegasse motivos nobres, pagou caro por tal ato, quando não com a própria vida.
O episódio recente de divulgação pelo sítio da rede mundial The Intercept cobra o preço da história da Força Tarefa do Ministério Público Federal do Paraná e do então Juiz Federal que conduziu a operação Lava Jato até seu ápice, a condenação e prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. Não se trata de uma divulgação de material desimportante: bastante ao contrário. The Intercept divulgou rico conteúdo de conversas entre Procuradores, entre Procuradores e Juiz em nível dificilmente visto. O que isto significa?
Num primeiro momento, há que se dizer que o material resulta de uma ação ilegal da fonte do jornalista. Não há dúvida quanto a este aspecto. Sua divulgação não é ilegal, mas a forma como se chegou ao material, sim. É assim no nosso estado democrático de direito: 5º, inciso LVI (“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”). Eis um item que integra o rol dos direitos e garantias fundamentais, protegidos para a eternidade pelo par. 4º do art. 60 da mesma Constituição Federal. A Força Tarefa da Lava Jato revelou-se a maior apoiadora da relativização de outro direito fundamental, no mesmo art. 5º, agora no inciso LVII: a presunção da inocência. Seja pelas inúmeras manifestações midiáticas de seus integrantes, seja pelo Juiz que conduziu os processos da Operação não faltou manifestação, amplificada por seu poder na mainstream media, contra a relativização de direitos e garantias fundamentais. Reforçam a Força Tarefa e o antigo Juiz, agora Ministro da Justiça, ser a divulgação de suas conversas uma violação criminosa. Os mesmos Força Tarefa e Magistrado jamais tomaram qualquer atitude contra os vazamentos que ocorreram no âmbito da Operação há anos.
Além disso, o chamado “projeto anticorrupção” – consubstanciado no Projeto de Lei nº 4850/2016, com forte apoio da Força Tarefa – foi aprovado em 30/11/2016 pela Câmara de Deputados. Entre as medidas do Projeto está a possibilidade do uso de provas ilícitas, o quê, repito, é vedado pela Constituição. Ao que parece, a Constituição não teve poder de convencimento suficiente para desencorajar os defensores de tal medida: ”Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação de direitos e garantias constitucionais ou legais. § 2º Exclui-se a ilicitude da prova quando: VI – obtida em legítima defesa própria ou de terceiros ou no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência; VIII – necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena; IX – obtidas no exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público”.
Até aqui temos apenas a confirmação da história: a legalidade é-nos preciosa porque protege a todos e não somente a mim contra meus inimigos ou adversários. O uso do direito como arma política, afinal, consiste na mais perniciosas das lutas que se pode travar.
Num instante posterior, tem-se que, até agora, o conteúdo divulgado é autêntico. Nem Força Tarefa nem o Ministro da Justiça Sérgio Moro negaram os diálogos e o teor do que foi publicado. Do ponto de vista da legalidade, Sérgio Moro e os Procuradores cometeram graves violações funcionais e penais, a comprometerem especialmente a condenação de Luis Inácio Lula da Silva. As conversas não deixam dúvidas que o objetivo da Força Tarefa e do Juiz Moro era principalmente o Partidos do Trabalhadores e suas lideranças. Em certa altura, o então Juiz Moro lembra que não se pode querer processar todos, que um fiat justitia, pereat mundus seria um engano; assim, concentre-se todos os esforços no PT e na suas lideranças. Foi o que ocorreu.
Do que se depreende objetivamente das conversas, não foram apenas conversas normais entre advogados, juiz, partes. Juiz algum, no exercício normal de seu cargo, insinua antecipação de decisão, sugere contatos de possíveis testemunhas a uma das partes, ou procura saber sobre a posição da parte acusatória antes de decidir.
A tentativa de banalizar o que não é banal – com o barato recurso ao “amiguismo” – sugere o reconhecimento da falta grave cometida, além de revelar a força do patrimonialismo ainda presente em nossas instituições. Dizer que as conversas são normais consiste apenas num sofisma e quase numa confissão. Esta, sim, obtida de forma legal.
Como a história recomenda obediência ao estado democrático de direito, resta esperar que as instituições brasileiras reparem – com rigor e logo – o mal que foi feito. Uma excelente oportunidade de começarmos o trabalhar o nosso próprio passado.

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