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Condutas vedadas, eleições 2020 e calamidade pública (COVID-19), por Raquel Machado e Jéssica Teles

A pandemia do COVID-19 (coronavírus) ascendeu várias reflexões e discussões de ordem sanitária, política, democrática e jurídica. Nesse complexo cenário, apesar de a vida em seu aspecto biológico pulsar como questão mais importante, outros temas precisam ser enfrentados como premissa organizacional do cotidiano e para o funcionamento das instituições, palco decisório das medidas sobre a saúde.

Nos últimos dias, com a proximidade do processo eleitoral de 2020, além de preocupações que vão do cumprimento do calendário eleitoral à realização ou não das eleições municipais, vem se apresentando também o drama referente aos limites de atuação dos gestores públicos e quais medidas poderiam adotar para contornar as consequências da pandemia, dando a necessária assistência à população mais afetada. Trata-se de questão que intersecciona o Direito Eleitoral e o Direito Administrativo.

Estados já decretaram o isolamento social, que apesar de não anular a transmissão do vírus, diminui drasticamente o contágio, preserva vida e dá tempo para que os entes públicos e seus gestores, com base em dados, experiências comparadas e na indicação científica, avaliem as medidas a serem adotadas no alcance do interesse público, e tracem planos e estratégias para o futuro, ainda incerto. O espaço de discricionariedade do gestor deve ser usado para atender a finalidade pública, a qual deve ser proteger a população dos efeitos sociais, políticos, econômicos e sanitários provocados pelo coronavírus.

Do ponto de vista do Direito Administrativo, o interesse público é contingente e cabe ao gestor eficiente a sua identificação para traçar estratégias políticas e administrativas, dentro da legalidade/juridicidade, e com respeito aos direitos fundamentais.

Administrar não é só aplicar a lei de ofício; também é refletir e planejar, dentro dos espaços discricionários, visando o melhor para todos (não será objetivo deste escrito entrar nesse debate filosófico), em um dado espaço de tempo.

Ao pensar sobre o interesse público, questão delicada surge quando nos deparamos com um cenário em que a pandemia está ocorrendo em um espaço de tempo chamado pela legislação de “calendário eleitoral”, o qual, desde o dia 1º de janeiro, proíbe a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública.

A própria vedação, contudo, traz uma ressalva: “exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa (Lei nº 9.504/1997, art. 73, § 10).”

O Direito não tem como contemplar todas as hipóteses fáticas para sua regulação. Assim, utiliza-se de padrões normativos através dos quais se reconhece a impossibilidade de a norma ser aplicada quando a situação de “normalidade” não se verificar.

Tendo como marco a Lei nº 9.504/97, desde então, não se verificou qualquer situação semelhante ao que estamos vivendo, o que nos coloca diante da justa preocupação, que também é a dos órgãos de controle e fiscalização, da oposição e também dos gestores e parlamentares: como dar assistência à população, principalmente a mais vulnerável, sem violar a legislação (eleitoral, municipal, de direito administrativo, financeiro etc.)?

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral diferencia as duas hipóteses do §10, do art. 73, da Lei nº 9.504/97. Para a Corte, é possível, em ano de eleição, a distribuição de bens e serviços, quando a necessidade de doação for justificada pelas seguintes situações: (1) calamidade pública e estado de emergência; 2) ou existência de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

As duas hipóteses protegem o gestor de maneiras diferentes.

A primeira lhe permite adotar medidas assistenciais e de amparo à população em casos não esperados. São nesses momentos que se espera do gestor dedicado e eficiente uma resposta concreta. Atitude diversa contrariaria seu poder-dever de agir e alcançar o interesse público que não está vinculado a situações contingenciais.

As situações de calamidade e estado de emergência são imprevisíveis. Não haveria como se exigir autorização específica em lei e ainda a execução orçamentária no ano anterior.

A segunda trata-se da vedação à paralisação de políticas já existentes no ano anterior. O medo do uso da máquina pública para proveitos eleitorais não deve ser maior que a preocupação com a consecução do interesse público; mas este, diga-se, deve ser alcançado e buscado dentro dos padrões normativos e constitucionais, levando em conta o sistema jurídico como um todo, em virtude da sua unidade sistêmica.

Existe, de fato, uma linha muito tênue a ser observada. Por ser a primeira experiência, pós 88, que nos coloca para refletir sobre essa situação no plano nacional, natural o temor inicial. Alguns pontos precisam ser observados.

A questão que vemos como básica, em qualquer ação, deve ser a distinção das 02 (duas) hipóteses do §10 do art. 73, da Lei nº 9.504/97, como explicado acima.

Outra questão importante refere-se à observância do princípio da impessoalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal, sem adentrar a questão metodológica do conceito de princípio dentro da dogmática jurídica. Deve-se, assim, garantir sejam as medidas adotadas pelos entes desvinculadas das pessoas de seus gestores e que os critérios de distribuição sejam objetivos e vinculados à finalidade da política contingencial adotada para assistência durante a pandemia.

Outro ponto refere-se à declaração da situação de calamidade pública. Apesar de incontroversa, bastando uma breve análise do que está ocorrendo no mundo e no Brasil, o Direito tem mecanismos para que ela seja juridicamente reconhecida. Trata-se do que diz o art. 65 da Lei Complementar nº 101 de 2000.

O estado de calamidade pública deve ser reconhecido pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação. O ente federativo deve, através dos seus poderes, reconhecer o estado de calamidade pública e emergência, por meio de um devido processo legislativo. Esse reconhecimento, no quadro pandêmico atual, trata-se de um poder-dever.

Importante frisar decisão monocrática oriunda do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida dia 29 de março de 2020, pelo Ministro Alexandre de Moraes, na ADI 6.357, a qual afastou a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias durante a pandemia do novo coronavírus.

A decisão se aplica a todos os entes que tenham decretado estado de calamidade pública. A excepcionalidade do momento, provocada pela pandemia do COVID-19, foi uma das razões levantadas pelo Ministro, em sua fundamentação, para conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) visando a “proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação”.

Ou seja, os Poderes Executivo e Legislativo devem fazer o reconhecimento formal do estado de calamidade. Omissão nesse sentido, pode sim caracterizar ato de improbidade por obstar o desenvolvimento de políticas em prol do combate a um problema pandêmico e engessar, do ponto de vista das finanças públicas, a sua resolução.

Responsabilidade política e social será exigida dos gestores. São dispositivos que estão sendo flexibilizados para o melhor e mais rápido alcance do interesse público e qualquer desvirtuamento deverá ser controlado e punido.

Nesse cenário, a colaboração e o diálogo interinstitucionais precisarão ser realizados. É importante que o Poder Executivo, Poder Legislativo, Ministério Público e Tribunais de Contas dialoguem e busquem alinhar as medidas que precisam ser tomadas em benefício da população. A harmonia entre as instituições, pilar republicano, deve ser e estar ainda mais forte nesse momento em que a colaboração e solidariedade mútuas serão a principal arma contra o novo coronavírus.

Reflexão idêntica se aplica à necessidade das contratações temporárias autorizadas pelo art. 37, IX, da Constituição Federal

Por fim, é importante convidar os gestores a refletirem sobre as políticas a serem pensadas e repensadas nesses tempos de pandemia causada pelo COVID-19.

Com o intuito colaborativo, sem invadir o espaço de discricionariedade, as políticas assistenciais (re)distributivas são determinantes, mas não as únicas.

Os municípios estão investindo e preparando seu sistema de saúde para receber a população e lhe fornecer um tratamento hospitalar digno? Hospitais temporários estão sendo construídos?

Que tipo de política e o porquê foi adotada por cada Administração, mais do que nunca, precisam estar fundamentadas e vinculadas à finalidade pública atual.

Há muito a ser feito. Sem medo. Com colaboração, eficiência e probidade. Poderes e instituições, a união e diálogos, mais do que nunca, serão a chave para o alcance do interesse público atual: proteger a população dos severos efeitos sanitários, econômicos e sociais da pandemia.

O interesse público perpassa por todas essas questões. São indagações convidativas.

 

Profa. Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado: advogada e professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará. Chefe do Departamento de Direito Público da FD-UFC. Professora-Orientadora do Grupo Ágora (UFC).

Profa. Jéssica Teles de Almeida: advogada e professora de Direito Eleitoral e Direito Administrativo da Universidade Estadual do Piauí. Coordenadora do Curso de Direito da FIED. Pesquisadora do Grupo Ágora (UFC).

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