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Celebração que reúne (des)afetos. Por Candice Machado

Candice Machado é escritora e jornalista. Foto: Divulgação

Tenho mania de nos colocar no lugar dos outros. Eu e quem quer que esteja ao meu lado, hábito que costuma chatear os mais sensíveis a incursões por suposições dolorosas. O fato é que me precipito na angústia alheia e gosto de te arrastar comigo, quem quer que seja você, que me acompanha no instante.

Dia desses, enquanto rolava a tela do meu celular pelo Twitter, esbarrei com uma cena chocante, que me tragou na mania de sempre. Olhos inertes e arregalados estampavam um rosto impassível, estendido no chão. O homem tinha acabado de levar um soco e a cena fazia crer que não sobreviveria com as mesmas capacidades de antes. O episódio perturbador foi explicado por vídeos que traziam as circunstâncias que antecederam e provocaram o golpe. O homem branco, tombado ao chão, era um racista brutal e ostensivo em sua vontade de aniquilar.

“Você é negro”, “Vocês valem menos que nós (brancos)”, “Vocês são nojentos”, “Eles são meus pets”, gritava o homem em questão. Os insultos duraram aproximadamente seis minutos, dentro de um metrô em Londres.

Não é difícil imaginar a sensação do grupo de rapazes negros, alvo daquela agressão e agente da reação. Não exige demasiado esforço compreender a resposta compatível ao grau da violência empreendida naquela tentativa de oprimi-los. Considero o meu próprio proceder ao substituir a palavra “negro”, por “mulher”, ou “nordestina”. Acrescento a isso a existência de sujeitos que viram a si e aos seus serem aniquilados e calados desde que nosso mundo é mundo, vivências que minha pele jamais me permitirá conhecer. Concordo que não é possível autorizar o autoritarismo.

É que a conduta irrestrita de princípios básicos e tão caros à democracia, como a liberdade e a tolerância, pode levar a paradoxos e contradições.

A liberdade de expressão ilimitada transpõe a fronteira da intolerância. Falar e fazer o que se bem entende pode levar a atos criminosos e previstos em lei, como o racismo, e vai além. Ao tolerar atos e falas intolerantes, permitimos que se instale a aniquilação de tudo aquilo que opõe, jogamos a sete palmos a discordância salutar, massacramos existências e, com elas, a própria liberdade. Uma sociedade tolerante não tolera a intolerância.

Rolo mais um bocado a tela do meu celular, a maioria dos comentários parece assimilar os limites da tolerância. Outros chegam a lamentar que o homem permaneça vivo. “Que pena que não foi um fascista a menos”, leio por ali.

A frase me remeteu ao regozijo cruel expressado por inúmeros brasileiros, em redes sociais, diante da morte de um menino de sete anos: o neto do ex-presidente Lula. “Um comunista a menos”, foi dito na ocasião.

É evidente o agravante do ódio direcionado a uma criança em idade tão tenra, mas celebrar a morte do outro, em qualquer período da vida, não parece igualmente desumano? Creio que não faz muita diferença se o ato provém do ódio à corrupção ou ao falso moralismo; aos regimes fascistas, ou comunistas. Sempre encontraremos suporte às nossas ideias, não importa se elas são tão absurdas quanto acreditar na terra plana. Quando celebramos a violação do diferente, partimos de afetos e produzimos efeitos igualmente cruéis.

Certamente, existem sentimentos mais nobres, mas, nem por isso mais humanos do que o ódio. Sentir o que quer que seja é legítimo, mas nos consolidamos como seres sociáveis ao racionalizar os afetos pessoal e coletivamente. Estipulamos limites que a intolerância desconhece, nos estabelecemos como sociedade ao carregar, dentre outras coisas, a empatia e o diálogo que possibilita a convivência de seres diversos.

Me pergunto quando é que a reação do oprimido dá continuidade à cultura do ódio. Creio que a resposta não se dá na conduta possivelmente violenta e reativa de um grupo em particular, mas no enredamento de um cordão de hostilidades morbidamente entusiasmadas. Costura-se um tapete discursivo que legitima e inflama o ódio e dá passagem a um afeto difícil de controlar. Me questiono quanto desse ódio não estaríamos arremessando sobre aliados ideológicos, quando, diante de um escorregão nas ideias, aderimos a cancelamentos digitais que silenciam e, muitas vezes, violentam, ao negar o confronto no campo dos argumentos.

Me parece que a intolerância, quando comemorada, deixa de ser um paradoxo que combate a si mesma, converte-se em elemento de autoconservação. O entusiasmo perverso dos intolerantes parece abrir um buraco em nossa humanidade, passa a semear um campo retroalimentar, celebra o soterramento do divergente.

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