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Buser e a inaplicabilidade do precedente Uber, por Fernando Villela

Fernando Villela de Andrade Vianna é Sócio do Setor de Direito Público, Regulação e Infraestrutura do Vella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG), Mestre em Regulação do Comércio pela New York University (NYU) e membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ.

Fernando Villela
Post convidado
Cream skimming e o risco sistêmico às políticas públicas do serviço público de transporte coletivo
A sociedade contemporânea vivencia um momento de boom de inovação tecnológica, que deve ser celebrado, protegido e regulado pelo poder público. É dessa forma que a humanidade prospera e alcança níveis de qualidade de vida cada vez mais altos. Antes mesmo de a teoria introduzir conceitos como desconexão e descompasso regulatório[1], e a consequente necessidade da correção dessas falhas, um exemplo do passado é ilustrativo sobre o poder potencialmente destrutivo do Estado sobre as inovações disruptivas, que abalam o status quo e a forma então-conhecida de interagir com o mundo e com as pessoas: o “Betamax case”.
Em 1984, no caso Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc., 464 U.S. 417, a Suprema Corte dos Estados Unidos, por um apertado placar de 5-4, decidiu, em suma, pela legalidade de uma tecnologia que permitia às pessoas gravarem conteúdos transmitidos pelos aparelhos televisores, deslocando no tempo o momento de assisti-los (time-shifting). Anos seguintes, a utilização do que ficou conhecido como videocassete/“VCR” foi tão maciça pela sociedade que as tentativas de lobby no Congresso norte-americano foram inócuas para proibir, via legislativa, a fabricação e venda desses equipamentos. Nenhum parlamentar estava inclinado a assumir o ônus político de tentar coibir o que havia se tornado uma das principais inovações disruptivas da época. Não é à toa que alguns autores consideram este caso um porto seguro para a inovação e a “Magna Carta for the digital age”.
Agora, imaginemos se o placar do referido julgamento tivesse sido contrário à tecnologia? Com a economia mundial ainda não tão globalizada, sem o mercado consumidor dos Estados Unidos, dificilmente teríamos tido acesso ao VCR e a todas as suas aplicações no cotidiano – e potencialmente às inovações posteriores, como o CD (compact disc). É inegável, portanto, que o Estado (Executivo, Judiciário e Legislativo) detém uma prerrogativa de incentivar ou limitar o ímpeto inventivo e as consequências práticas para a vida das pessoas.
Desde 2015, tenho sustentado em distintos foros, inclusive na mídia, a legitimidade da atividade exercida no âmbito do transporte privado individual de passageiros por usuários cadastrados em aplicativos e, portanto, a inconstitucionalidade de normas municipais que buscavam proibir essa atividade.
Afinal de contas, táxi há muito tempo deixou de ser serviço público de fato e passou a ser atividade econômica de utilidade pública; informada, portanto, pelos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Foi exatamente isso que o legislador ordinário pretendeu ao promover alterações na Lei Federal nº 12.587/2012, por meio das Leis Federais nºs 12.865/2013 e 13.640/2018. O Professor Sérgio Guerra, Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, em artigo[2] publicado no O GLOBO em 2016, trouxe um estudo elucidativo do histórico da regulamentação da atividade de táxi e das alterações legislativas e, no auge da polêmica da expansão do transporte privado individual de passageiros no Brasil, também concluiu pela equivalência entre estes e o táxi.
No dia 09 de maio de 2019, o Supremo Tribunal Federal pôs fim a essa discussão e decidiu – corretamente -, por unanimidade, no bojo da ADPF nº 449 e do RE nº 1.054.110, que a proibição ou restrição da atividade de transporte por motorista cadastrado em aplicativo é “inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência”, além de ter fixado que os municípios e o Distrito Federal, no exercício de sua competência local para regulamentar e fiscalizar o transporte privado individual de passageiros, “não podem contrariar os parâmetros” pela União e a Constituição Federal. Afinal de contas, trata-se de atividade econômica de utilidade pública, não serviço público, nos termos da lei, principalmente após a alteração promovia em 2013.
Agora, a questão que a Suprema Corte brasileira deverá enfrentar no futuro próximo se refere ao BUSER, i.e., “transporte privado coletivo de passageiros”[3], que busca aplicar de forma automática e “por gravidade” o raciocínio jurídico-constitucional adotado nos casos citados acima. É preciso, contudo, cautela e uma avaliação mais aprofundada acerca da natureza do serviço público[4] – em contraponto à atividade econômica de utilidade pública -, bem como as significativas diferenças entre os regimes jurídicos e as políticas públicas envolvidas.
Diferentemente do táxi e do “transporte privado individual de passageiro”, o transporte público coletivo de passageiro, que é regulado[5] pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), depende do efeito de rede para a sua atuação saudável e para atender aos princípios da continuidade, da modicidade tarifária, da eficiência e da universalidade. Afinal de contas, como corolário do transporte ter sido alçado a direito social, nos termos do artigo 6º, da Constituição Federal, com a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 90/2015, as empresas de transporte público coletivo de passageiros devem observar diversas obrigações sociais, tais como (i) alocar 2 (duas) vagas para idosos e conceder desconto de 50% (cinquenta por cento) da tarifa a partir do terceiro; (ii) reservar 2 (duas) poltronas para deficientes físicos, sendo que, desde 2018, todos os ônibus devem oferecer plataforma elevatória; (iii) oferecer 02 (duas) passagens gratuitas e 02 (duas) com 50% (cinquenta por cento) de desconto para jovens carentes, com idade até 29 (vinte e nove) anos; (iv) assegurar frequência mínima para cada linha, nos termos da regulação editada pela ANTT, além do cumprimento dos horários pré-estabelecidos de partida e chegada, independentemente da quantidade de passageiros embarcados, etc.
Sob a ótica econômica, essas políticas públicas só podem ser cumpridas por meio de subsídios cruzados, na medida em que o Governo Federal não arca diretamente com esses custos. É dizer, trata-se de verdadeira obrigação social compartilhada pela parcela da sociedade economicamente ativa e/ou não tão hipossuficiente, assim considerada pelo legislador ordinário. Isso significa dizer, pois, que é necessário muito mais reflexão antes de se equiparar a discussão constitucional subjacente no caso do transporte privado individual de passageiro (atividade econômica de utilidade pública) ao transporte público coletivo de passageiro (serviço público delegado pela União Federal), justamente pelo seu risco sistêmico concreto de frustração dessas políticas públicas.
É evidente que há uma diferenciação entre transporte público coletivo de passageiro e o fretamento, modalidade na qual se pretende sustentar a legalidade e constitucionalidade de aplicativos e plataformas de tecnologia, como o BUSER.
No entanto, essa é uma discussão que, na nossa visão, se apresenta como forma de simplificar e minimizar um debate muito mais complexo e sistêmico. Por exemplo, em eventual decisão favorável do Supremo Tribunal Federal ao exercício da “atividade privada de transporte coletivo”, as empresas de tecnologia e plataformas digitais poderão instalar totens em rodoviárias para a atração de passageiros e adesão, em concorrência com as empresas que prestam o serviço público de transporte de passageiro? Nesses casos, o prestador do serviço público continuará com a obrigação de cumprir a frequência mínima e o transporte de passageiros em situação de hipossuficiência? Haverá simetria de obrigações sociais entre os prestadores de serviço público e o dito “transporte privado coletivo de passageiros”?
Afinal de contas, o serviço público depende justamente dos efeitos de rede para a sua manutenção e o cumprimento das obrigações sociais impostas pelo legislador e pelas políticas públicas setoriais. Sem os subsídios cruzados dos passageiros, que arcam com os custos de determinadas parcelas da sociedade, o prestador de serviço público não conseguirá manter a continuidade, a eficiência e a universalidade desse serviço.
Parece-nos que o Estado ainda precisa amadurecer a reflexão sobre esse tema e avaliar cuidadosamente o impacto regulatório no setor antes da tomada de decisão. Até porque, dentro da perspectiva econômica, é natural que haja o efeito de cream skimming[6] no setor de transporte: as empresas de transporte que adotam o modelo de negócio “BUSER” passarão a concentrar seus serviços apenas nas rotas/linhas mais lucrativas, especialmente em horários de pico, canibalizando dos prestadores de serviço público os subsídios cruzados necessários para manter todas as suas rotas/linhas – e fora dos horários de pico – não lucrativas, frustrando, a um só tempo, a economia de rede necessária para a manutenção de todas as obrigações sociais.
Assim como a Suprema Corte norte-americana teve um papel crucial no avanço das inovações e tecnologias com o caso “Betamax” na década de 1980 e o Supremo Tribunal Federal com a acertada decisão sobre a legalidade e constitucionalidade do transporte privado individual de passageiro (modelo “UBER”), que se consubstancia em atividade econômica de utilidade pública, não serviço público, é igualmente importante que as tecnologias consideradas “disruptivas” não sejam empregadas de forma irrefletida e automática, em um efeito free rider, nem usadas como verdadeira Carte blanche, para se permitir práticas com potencial de frustrar políticas públicas setoriais que dependem do efeito de rede e dos subsídios cruzados para a sua manutenção.
Caso contrário, esse tipo de tecnologia será disruptiva não por seu mérito inventivo, mas sim por implementar verdadeira desregulamentação do setor de transporte público coletivo de passageiros, ainda que por via transversa. Haverá mais incentivos para os atuais prestadores do serviço público aderirem ao modelo de negócio “BUSER”, em prejuízo aos próprios usuários e à parcela hipossuficiente da sociedade. Afinal, o “creme” todos querem.
Com isso em mente, parece-nos razoável exigir que o Estado brasileiro promova uma análise de impacto regulatório (AIR) mais estruturada antes de se permitir a ampliação do serviço de fretamento por meio de tecnologia e plataformas, principalmente diante do cenário altamente provável de que sua autorização não-regulada venha a gerar um efeito concreto de concorrência de facto com os prestadores do serviço público, com o consequente cream skimming. A assimetria regulatória diante das obrigações sociais, a exemplo das gratuidades, da frequência mínima e da obrigatoriedade de observar os horários pré-fixados, sem o subsídio cruzado decorrente da concorrência oportunista do modelo de negócio amplificado pela tecnologia, será muito grande.
Uma alternativa poderia ser o próprio Supremo Tribunal Federal exigir da União Federal, titular do serviço público de transporte coletivo de passageiro, nos termos do artigo 21, XII, “e”, da Constituição Federal, uma avaliação rigorosa dos impactos sistêmicos no setor antes da tomada de qualquer decisão no bojo da ADPF[7] ajuizada corretamente, a nosso ver, por uma Associação setorial. A União Federal, inclusive, pode preferir regular a matéria diretamente via Congresso Nacional, após debate democrático e amplo, tal como ocorreu em 2013, quando a atividade de táxi deixou de ser serviço público – de fato e de direito – com a promulgação da Lei Federal nº 12.865. Neste tema, convém lembrar, a discussão não é apenas jurídica, mas também – e sobretudo – econômica e social.
[1] Das produções acadêmicas no Brasil sobre esses institutos, v. VIANNA, Eduardo. Regulação das fintechs e sandboxes regulatórias. FGV Direito Rio, 2019. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/27348.
[2] V. https://oglobo.globo.com/opiniao/heranca-de-taxi-pode-beneficiar-uber-18386119
[3] As aspas se justificam, pois, ao menos em âmbito federal, ainda não existe uma categoria jurídica “transporte privado coletivo de passageiros”.
[4] Por expresso mandamento constitucional, nos termos do art. 21, XII, “e”.
[5] Para fins deste artigo, considerar-se-á apenas o nível federal, apesar de todo o raciocínio jurídico-regulatório se aplicar por simetria aos demais entes federativos.
[6] Na teoria regulatória, em síntese, cream skimming é uma expressão que ilustra a decisão de empresas que buscam atender apenas os usuários/clientes lucrativos.
[7] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 574, ajuizada pela ABRATI – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (ABRATI).

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