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Aviso aos navegantes. Por Angela Barros Leal

Na madrugada de quinta-feira, 22 de julho de 1869, o farolete do Mucuripe foi completamente consumido pelo fogo. O fogo ou a fumaça devem ter sido avistados da vila da Fortaleza, distante dali cerca de 8km. Certamente fumaça e fogo foram percebidos por vapores, brigues ou sumacas cruzando ao largo da costa cearense, atentos àquele facho tremulante e mais intenso de luz, tão diferente do modesto foco fixo habitual.

Não era a primeira vez, nem a segunda, que o dito farolete incendiava assim, queixaria-se o jornal Cearense. Talvez essa vocação combustível se devesse ao estoque abundante de óleo ali conservado, necessário para embeber e acender o algodão torcido que servia de pavio ao que era, de fato, um grande candeeiro.

A cada semestre a Capitania dos Portos anunciava licitação para aquisição dos itens necessários ao funcionamento do farolete. Dependendo da época, buscava fornecedor para azeite de sebo, de carrapateira, de mamona e coco ou, até mesmo e estranhamente, do puro azeite de oliveira, o suntuoso azeite doce. Fornecedor para sabão e toalhas destinadas à limpeza dos tubos e vidros. Para espírito de vinho, o álcool destilado do vinho. Para pó de tijolo ou tijolos ingleses – confesso que desconheço para quais funções.

Desde 1851 já havia queixas contra a precariedade do equipamento, inaugurado em 1846. O arrematante dos consertos, “esqueceu do contrato e lá está o farolete, em agonias mortais”, reclamava o jornal Pedro II, esmiuçando os detalhes da má conservação: “Quem quiser ver, que dê um passeio, e se for vestido de roupa branca melhor”, desafiava o jornalista, certamente por ter realizado a visita in loco. “Entre no edifício e chegue onde está colocada a máquina ou candeeiro. Verá como sai de lá tisnado e besuntado, por mais cuidado que se ponha de não encostar em parede, porta, portal etc”.

A luz era de vela de cera preta, dramatizava o redator: “luz de quarta-feira de trevas ou de lanterna de cemitério”, luz oitocentista a tremular na ponta do Mucuripe, projetada de um recife de pedra arenosa, penetrando aguda de mar a dentro, rodeada pela salsugem, pelo vento arenoso das dunas, pelo estrondo das ondas. Mais Edgar Alan Poe impossível.

Um temporal que desabou sobre a cidade em maio de 1855, a chuva mais intensa do ano, trouxe ainda mais prejuízos revelando para nós, membros da tão falada posteridade, as condições de trabalho para idosos e crianças. Um raio atingiu o farolete estilhaçando todos os seus 260 vidros. Não resistiu inteiro um sequer, registra O Cearense, e o mesmo raio consumiu “quanto ferro de fechadura, ferrolho, pregos & etc encontrou”.

Tiveram sorte, o velho e dois meninos que trabalhavam naquela madrugada tempestuosa, em meio à ventania e ao fragor da trovoada. Na ocasião em que caiu a descarga elétrica o velho limpava o revérbero, a lâmpada destinada a refletir a iluminação, ficando levemente ferido na testa por um estilhaço de vidro. Um dos meninos nada sofreu. O outro “ficou assombrado” por essa apresentação, de primeira mão, à fúria da Natureza.

E assim fez-se evidente a necessidade de um novo farol para o Mucuripe, inaugurado pelo presidente da província, Comendador João Wilkens de Matos, no dia do aniversário de 26 anos da Princesa Dona Isabel, 29 de julho de 1872. Erguia-se na mesma extremidade da praia, ponto estratégico na enseada aberta para visualizar a aproximação dos navios, sendo “um edifício básico octogonal de alvenaria de tijolo, sobre o qual se erguia uma torre cilíndrica de ferro”, na descrição de Gustavo Barroso.

Como para mim tudo isso era novidade, leio as notícias nos jornais antigos com o mesmo prazer de quem lê um romance de época. Às 16h30 daquela segunda feira o Presidente e “convidados distintos”, no registro do jornal A Constituição, partiram rumo ao Mucuripe aguardando o por do sol. Às 18h subiram até a torre, pela escadinha circular de ferro, os mais ilustres presentes: o presidente Wilkens, o engenheiro Luiz Manoel de Albuquerque Galvão, que concluíra a obra, e o maquinista Robert Turnbull – ou Trumbull, ignoro a versão correta. Cerimoniosamente, acenderam o novo farol.

“Depois desse ato”, diz A Constituição, “o Presidente desceu da torre e levantou vivas a Sua Majestade o Imperador, à Sereníssima Princesa Dona Isabel, e à prosperidade do Ceará”. O anfitrião, engenheiro Galvão, obsequiou os visitantes com “um copo d’água”, ou “um bem servido copo d’água”, como exagera outro jornal, o Pedro II. Entre goles ergueram-se brindes enquanto os sinais luminosos venciam o oceano, lampejando de minuto a minuto, em orgulhoso aviso aos navegantes de que ali estava o próspero Ceará.

 

Angela Barros Leal é jornalista e escritora. Autora de 18 livros. 

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