Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

A vida no meu tempo. Por Angela Barros Leal

FOTO: Minha filha sob a gigantesca árvore de Natal. Tem na mão um pirulito branco de espirais vermelhas. Os enfeites floridos da árvore formam uma coroa em sua cabeça. Estamos na Disneylândia, é Natal, e é por isso que ela tem esse luminoso brilho no rosto.

Era outubro, 1981, quando chegamos na Califórnia e o calor era bem brasileiro. O bebê dormia e sonhava. A menina, 7 anos, adorou todas as novidades e em seis meses falava inglês como americana. Nós ainda tropeçaríamos muitos meses no emaranhado de expressões idiomáticas, preposições, e na impossível pronúncia correta do th.

FOTO: Casa de Auliki, amiga finlandesa. O marido dela nos fotografa, sorridentes, antes de voltar para a universidade onde ele reparte a sala com você. Auli é jovem e usa aparelho corretivo nos dentes. Rindo, emite brilho metálico à luz do meio-dia.

Aguardávamos Lila, a israelense, que chega com um vaso de violetas. Lila, que lê livros passando as páginas da esquerda para a direita, riu da primeira vez que viu uma Bíblia em inglês. Sua caligrafia é insegura, mas torna-se forte ao traçar os sinais de sua língua – pequenos elefantes enlaçados tromba e cauda. O sol está em toda parte. Não conhecemos o idioma umas das outras e dividimos nossas experiências em um inglês inseguro e gestos expressivos. Enquanto serve peixe em fatias finas, Auli conta como cuida de seu bebê. Enquanto comemos pudim de baunilha falo sobre minhas dificuldades na cozinha. Lila usa as mãos para mostrar como faz as tranças grossas que emolduram sua cabeça. Temos uma linguagem comum, mais antiga que as palavras. Estamos felizes, somos amigas.

FOTO: Você me flagra na cozinha, entre pratos sujos e panelas fumegantes. A foto no papel é perfeita, capturando fielmente minha expressão de pouca familiaridade com o ambiente.

Isso foi quando chegamos. Assumi a cozinha e o serviço doméstico em escalas, passando da ignorância à revolta, daí ao desespero, alcançando a resignação antes de aceitar o amor. Alimentar a família é fonte de alegria. Leio rótulos, copio receitas, traduzo medidas para o sistema decimal. Troco receitas com as vizinhas e me divirto secretamente. Escrevo cartas para casa denunciando lavagem cerebral. Será alguma coisa na água?

FOTO: Minha filha parada na praia cinza, oceano pacífico, uma gaivota pousada no canto direito do papel. Ambas me olham com a mesma inclinação de cabeça.

Você havia ido explorar a praia com nosso filho pequeno e me deixara sozinha, com todo aquele deslumbramento me apertando a garganta. Sento na areia áspera. Sei que, do outro lado do horizonte, estão as ilhas do Havaí, Maui, Oahu e Kauai. Você volta com as mãos cheias de conchas. O pequeno vem correndo como um barquinho oscilante. Vocês vêm contra o vento, olhos piscando, e se derramam a meu lado num riso tão igual. Retornamos para casa levando crianças dormindo, toalhas molhadas e um respeitoso silêncio.

FOTO: O carro alugado cheio de malas, bolsas, sacolas e pacotes. Paul nos fotografa em variadas expressões de nervosismo: você preocupado, eu roendo as unhas, a menina meio chorosa e o menino, 2 anos, empoleirado na maior mala. É o único sorridente.

June 26, 1983 – é o que diz a data no verso da foto, chegada pelo correio meses depois. Paul está de volta a Bath, assim como nós estamos de volta a Fortaleza. Ele e Rita foram nossos amigos com tantos pontos em comum, repartindo as mesmas idades, os mesmos aniversários, e o desacordo apenas entre Beatles e Rolling Stones. Nossa geração.

Outras fotos, tantas fotos: outro Natal com guirlandas nas portas; a neve no topo das montanhas, a duas horas de distância; os primeiros passos do bebê em tênis da Sears; minha filha de patins, a saia curta em movimento; piqueniques em cenários variados; mais visitas à Disneylândia, seguindo os bonecos e a própria infância; tantas lembranças.

Nossos amigos: Laura, carioca que eu nunca mais encontraria, e que se tornara minha melhor amiga. Mais nova do que eu e ao mesmo tempo infinitamente mais sábia, tranquila mãe de três filhos, me ensinando o que é paciência e de quanta força uma mulher é capaz. Anelise, Lore, Mary, Mary Jo, Rosa, Wilma, todas elas guardadas em meu coração.

Tivemos a sorte de capturar esses momentos, com a certeza de quem era feliz e sabia disso. De volta a Fortaleza, tivemos o mar perto de nós, o céu em brilho de rosa e prata entre cinco e seis da manhã, velhos amigos, família. Tínhamos pais e mães vivos, passeios com minhas irmãs, queijo coalho com doce de goiaba, cinema à tarde, crianças no colégio, e a consciência do que é a isso que me refiro quando hoje falo “no meu tempo”.

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

Mais notícias