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A razoabilidade foi contaminada. Por Raquel Machado e Lara Campos

Foto: Freepik

Cada vida humana vale todos os esforços para sua preservação, independentemente de diferença de gênero, idade, nacionalidade ou raça. Esses esforços hão de ser guiados pelos saberes científicos que melhor estruturam decisões objetivas. Para além da vida biológica, as manifestações espirituais da existência, também, requerem o máximo cuidado, para que o viver não seja mero vazio sentimental.

Em razão da pandemia do COVID-19, o elevado risco à vida biológica tem conduzido governos, de países de todo o mundo, a aplicarem esforços em sua preservação, sem tantas preocupações com os aspectos espirituais, ou mesmo, e isso é o mais grave, sem razoabilidade científica nas restrições impostas.

O que se tem visto é um festival de decisões tomadas para a preservação da vida biológica, mas orquestradas não apenas pela ciência considerada equilibradamente, como também pelo medo e por razões políticas diversas. As restrições impostas além do necessário ocasionam agora grave crise econômica, psicológica, além de retrocesso a direitos conquistados a duras penas ao longo do século XX.

Com a consagração dos direitos sociais, entre os quais o direito ao trabalho digno e direito às férias, o turismo se desenvolveu ao longo do século XX como decorrência do direito ao descanso, essencial ao equilíbrio psicológico, que termina por ter relação com a saúde biológica. Movidos por esse direito e pela curiosidade, o ser humano explorou novos lugares, cruzou fronteiras e amalgamou culturas.

A evolução nos meios de transporte e de comunicação e o reconhecimento de que a nacionalidade não deveria implicar restrições aos laços humanos também intensificaram o cruzar de barreiras geográficas e a globalização, não apenas econômica, mas relacional. O direito ao livre trânsito de pessoas tornou-se mais evidente como necessário à paz social e não somente ao atendimento de uma necessidade individual, sobretudo após as atrocidades nacionalistas e raciais vividas durante a Segunda Guerra Mundial.

Consta expressamente da Declaração Universal dos Direitos Humanos que todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades nela proclamados, sem distinção alguma, nomeadamente de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Não será também feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania (Art. 2º da Declaração). Além do reconhecimento do direito ao asilo, para casos graves de perseguição, consta igualmente que “1.Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. 2.Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.” (art. 13º da Declaração).

Durante esse período pandêmico, muitos países têm feito listas restritivas de entrada em seu território em relação a indivíduos de determinadas nacionalidades ou vindos de determinados lugares, a depender do controle do vírus na nação de origem. Parte-se, portanto, de uma presunção de que as pessoas de determinada nacionalidade têm mais chance de serem portadoras do vírus. Essas medidas praticamente paralisaram o fluxo de passageiros entre diversos países, com graves efeitos econômicos, além de terem gerado estereótipos de que pessoas de determinadas nacionalidades são mais contagiosas do que outras.

Presunções são relevantes para orientar tomadas de decisões quando difícil obter parâmetros exatos de aferição da realidade. Equivalem a uma generalização ou a um nivelamento para trazer mais rapidez e eficiência ao ato de decidir. No caso, as presunções referidas têm base estatística e científica considerando o grau de contaminação do vírus. Seriam, portanto, aceitáveis a priori.

O problema, porém, é quando tais presunções não se sustentam individualmente diante de testes científicos, e mesmo assim são mantidas, com generalizações em prejuízo à individualidade, e pior, com chance de grave limitação do trânsito de pessoas, trazendo ainda negativa repercussão econômica e psicológica. A “segunda onda” que alguns países Europeus vivem atualmente, como, por exemplo, a França, fazem-nos questionar em até que ponto a proibição da entrada em seu território de pessoas provenientes de países que não estejam na lista daqueles considerados como os que tem a epidemia “sob controle” é uma medida eficaz, pois o fechamento de fronteiras para os países considerados “terceiros” não impediu nova vaga do vírus.

Atualmente, o teste PCR-covid pode ser realizado momentos antes do embarque ou mesmo na chegada a países, a revelar o estado viral individualizado da pessoa no momento. Mesmo assim, governos insistem em generalizações políticas, negando efeito a um dado científico preciso e prologando uma restrição que teve sentindo em um momento em que laboratórios e pessoas não estavam preparadas para a realização e a apresentação do resultado do teste.

Pode parecer uma restrição sutil, mas não é, se considerados os ônus impostos a cada vida indevidamente restringida, a banalização da limitação ao direito de ir e vir, mesmo quando inexistentes motivos reais para tanto a não ser a nacionalidade e a falta de esforço dos governos para tomar medidas levando em consideração um novo estado da ciência sobre o vírus, com possibilidade de movimentação da sociedade.

O vírus tem instalado compreensível paralisia e medo, mas ir além do necessário para seu combate é instalar a paralisia e o medo como produtos próprios, contaminando o Direito, os indivíduos e a sociedade de sentimentos negativos desnecessários, e também nocivos à saúde. Importa, assim, exigir um repensar das autoridades globais, num diálogo diplomático sério e responsável, seja em respeito à ciência, seja em respeito aos direitos humanos.

Sobre as autoras: 

Raquel Machado é professora de Teoria da Democracia e de Direito Eleitoral na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, doutora pela USP e coordenadora do Grupo Ágora – Educação para a Cidadania.

Lara Campos Arriaga é advogada, Mestre em Direito pela Universidade de Paris e doutoranda em Direito pela Universidade de Paris.

Versão do texto em francês

La contamination de la raison – Par Lara Arriaga et Raquel Machado

Chaque vie humaine vaut tous les efforts pour être préservée, quel que soit son sexe, son âge, sa nationalité ou sa race. Ces efforts doivent être guidés par les connaissances scientifiques qui structurent au mieux les décisions objectives. Au-delà de la vie biologique, les manifestations spirituelles de l’existence nécessitent, également, le plus grand soin, afin que la vie ne soit pas un simple vide émotionnel.

En conséquence de la pandémie du COVID-19, le risque biologique élevé a conduit les gouvernements des pays du monde entier à déployer des efforts pour préserver des vies humaines. Cela a été fait sans pour autant s’inquiéter suffisamment des aspects spirituels mais aussi, et c’est le plus grave, en imposant des restrictions sans raison scientifique.

On peut constater diverses décisions pour la préservation de la vie biologique appuyés par des fondements scientifiques mais aussi par la peur et pour différentes raisons politiques. Les restrictions imposées au-delà de ce qui est nécessaire provoquent aujourd’hui une grave crise économique et psychologique, ainsi qu’un recul des droits conquis au cours du XXe siècle.

Avec la consécration des droits sociaux, dont le droit au travail et le droit aux congés, le tourisme s’est développé tout au long du XXe siècle grâce au droit au repos, indispensable à l’équilibre psychologique, lié à la santé biologique. Étant titulaires de ce droit et ayant cette curiosité, les êtres humains ont exploré de nouveaux endroits, traversé les frontières et fusionné des cultures.

L’évolution des moyens de transport, de communication et le fait que la reconnaissance de la nationalité ne doit pas impliquer des restrictions entre les liens humains ont également intensifié le franchissement des barrières géographiques et la mondialisation, non seulement économique, mais également relationnelle. Le droit à la libre circulation des personnes est devenu plus évidente et aussi nécessaire pour la paix sociale, cela pour répondre à un besoin individuel en particulier après les atrocités nationalistes et raciales subies pendant la Seconde Guerre mondiale.

La Déclaration universelle des droits de l’homme stipule expressément que tous les êtres humains peuvent invoquer les droits et libertés qui y sont proclamés, sans aucune distinction à savoir d’origine nationale ou sociale, de fortune, de naissance ou de toute autre situation. Il n’y aura pas non plus de distinction fondée sur le statut politique, juridique ou international du pays ou territoire de la naturalité de la personne, qu’il s’agisse de ce pays ou territoire indépendant, sous tutelle, autonome ou soumis à une limitation de souveraineté (art. 2 de la Déclaration). Outre la reconnaissance du droit d’asile, pour les cas graves de persécution, il est également indiqué que «1. Toute personne a le droit de circuler librement et de choisir sa résidence à l’intérieur d’un État. 2. Toute personne a le droit de quitter tout pays, y compris le sien, et de revenir dans son pays. ” (art. 13 de la Déclaration).

Au cours de cette période pandémique, de nombreux pays ont établi des listes restrictives d’entrée sur leur territoire pour des individus de certaines nationalités ou en provenance de certains endroits, en fonction du contrôle du virus dans le pays d’origine. Cette décision repose donc sur une présomption selon laquelle les personnes d’une certaine nationalité sont plus susceptibles d’être porteuses du virus. Ces mesures ont pratiquement paralysé le flux de passagers entre différents pays et causées de graves conséquences économiques. Elles ont de plus générées des stéréotypes selon lesquels les personnes de certaines nationalités seraient plus contagieuses que d’autres.

Les hypothèses sont pertinentes pour guider la prise de décision lorsqu’il est difficile d’obtenir des données exactes pour mesurer la réalité. Elles permettent de généraliser et d’apporter plus de rapidité et d’efficacité au processus de décision. Dans ce cas, ces hypothèses font référence à une base statistique et scientifique prenant en compte le degré de contamination du virus. Elles seraient donc a priori acceptables.

Le problème est cependant que lorsque de telles hypothèses ne sont pas étayées unes par une face aux tests scientifiques, elles sont maintenues, entrainant des généralisations au détriment de l’individualité et pire, avec une chance de limiter sévèrement le trafic de personnes, entraînant toujours des répercussions économiques et sociales négatives et psychologique. La « deuxième vague » que vit actuellement certains pays Européens, comme la France par exemple, nous amène à nous interroger : « dans quelle mesure l’interdiction d’entrée sur leur territoire de personnes originaires de pays ne figurant pas sur la liste de ceux considérés comme ceux qui a l’épidémie “sous contrôle” est efficace ? » En effet, la fermeture des frontières pour des pays considérés comme “tiers” n’a pas empêché une nouvelle vague du virus.

Actuellement, le test PCR-Covid peut être réalisé quelques instants avant le départ ou même à l’arrivée dans le pays de destination pour révéler le statut viral de la personne testée. Cependant, les gouvernements insistent et font toujours des généralisations politiques. Ces opinions gouvernementales nient l’effet d’une donnée scientifique précise et imposent toujours des restrictions qui ont été initiées au moment où les laboratoires n’étaient pas en capacité de tester les gens.

Cela peut sembler être une subtile contradiction, mais ce n’est pas en considérant les charges imposées à chaque vie indûment restreinte et la banalisation de la limitation du droit d’aller et de venir, même lorsqu’il n’y a pas de véritables raisons de le faire, sauf la nationalité et le manque d’effort des gouvernements à prendre des mesures tenant compte d’un nouvel état de la science sur le virus, avec la possibilité de mouvement de la société.

Le virus a installé une paralysie et une peur compréhensibles. Aller au-delà de ce qui est nécessaire pour le combattre, c’est installer la paralysie et la peur, contaminant la loi, les individus et la société avec des sentiments négatifs inutiles et également nocifs pour la santé. Ainsi, il est important d’exiger une remise en question de la politique exercée par les autorités mondiales dans un dialogue diplomatique, sérieux et responsable et dans le respect de la science et des droits de l’homme.

À propos des auteurs:

Madame Raquel Machado est professeur de théorie de la démocratie et de droit électoral à la Faculté de droit de l’Université Fédérale du Ceará, docteur en droit par l’Université de Sao Paulo (USP) et coordinatrice du groupe Ágora – L’éducation pour la citoyenneté.

Madame Lara Campos Arriaga est Avocate, titulaire d’un Master en Droit de l’Université de Paris et doctorante en droit à l’Université de Paris.

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