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A política e a filosofia ou entre o poder e o pudor

Catarina Rochamonte é graduada em Filosofia pela UECE, Mestre em Filosofia pela UFRN e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).

A política e a filosofia ou entre o poder e o pudor
Por Catarina Rochamonte

Temos defendido, em alguns de nossos ensaios, a importância de voltarmos aos gregos para pensarmos a política, já que quase todo o pensamento político moderno encontra-se contaminado pela visão gregária e coletivista que é comumente disseminada nos meios acadêmicos. No nosso entendimento, os gregos conseguiram conciliar o fortalecimento da individualidade com o senso de responsabilidade com a comunidade. Se as duas principais vertentes políticas atuais tendem, em seus extremos, para um individualismo exacerbado fundado no egoísmo (liberalismo) ou para um coletivismo servil fundado em um suposto altruísmo (socialismo), entre os gregos vigorava o humanismo como princípio espiritual norteador, o que se refletia na educação como a busca pela formação de um tipo elevado de homem e na política como percepção de que as normas que regem a vida da comunidade derivam das leis profundas que regem a natureza humana.
Se no Oriente a meta espiritual de um indivíduo era dirigida para a sublimação do mundo e para a auto-iluminação, na Grécia a potência espiritual dos indivíduos transbordava para uma práxis capaz de dinamizar e elevar a pólis. Os grandes filósofos, por mais altos fossem os seus voos metafísicos, tinham por tarefa tornar ao chão comum, recuperando para o seio da sociedade a elevação que conquistaram como indivíduos. Essa postura está ilustrada – na famosa alegoria platônica – pela necessidade de retorno do filósofo à escuridão da caverna mesmo depois de ter enxergado as verdadeiras formas. Esse transbordamento para o social da grandeza espiritual de determinados indivíduos possibilitou uma maior evolução política do Ocidente por meio da consecução de leis, normas e instituições que insuflaram o progresso social a partir de um ideal nobre de justiça e equidade.
Segundo o helenista alemão Werner Jaeger, autor do clássico Paideia: a formação do homem grego, há uma unidade de sentido entre todos os povos ocidentais e a antiguidade clássica, unidade essa que nem as fronteiras do tempo podem ultrapassar, pois lá está a fonte espiritual que traçou o nosso destino e à qual “seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrar orientação.”A despeito desse inquebrantável vínculo, optamos por relegar a influência maior e mais original dos gregos em benefício das noções políticas concebidas na modernidade, por exemplo, o pensamento de Maquiavel. A adesão a esse tipo de realismo político pode ser traduzida como uma transição do amor à lei para o amor ao poder, transição essa que respondeu pela separação entre ética e política, que deixa de ser compreendida como uma comunhão de valores entre indivíduos unidos por um ideal comum para ser interpretada como o âmbito de exercício de poder e nada mais.
Ocorre que esse realismo político influenciado por Maquiavel encontrou guarida em todas as instâncias político-partidárias que trabalham incansavelmente até hoje para neutralizar a força dos verdadeiros valores e que agem não em conformidade com o que é moral, mas em conformidade com uma ética adequada ao projeto de poder de seu movimento ou partido. Não se importam, esses políticos, com valores ou com meios e – embora exponham demagogicamente finalidades altruístas – apenas o poder é para eles o verdadeiro fim.
A filosofia está para a política assim como a democracia está para o povo. Aquela projeta o ideal necessário e possibilita a introjeção no campo social das ideias necessárias ao progresso, enquanto esta assimila o conteúdo abstrato e o põe em prática. A democracia é um ideal e não um fenômeno acabado e já realizado. Da forma como a compreendemos, ela é a ideia de que o povo é capaz de se harmonizar por intermédio de leis que correspondam ao substrato espiritual da humanidade, que correspondam àquilo que a humanidade já conquistou em termos de ética e moralidade.
Democracia não pode ser simplesmente o que o povo quer, porque aquilo que ele quer normalmente não ultrapassa os limites do imediatismo cuja realização pressupõe muitas vezes a renúncia ao olhar lançado para o futuro e para as próximas gerações. O político que vislumbra apenas o poder e não o projeto de uma sociedade mais sã é como a água suja de um rio que deveria servir de fonte. É claro que não estamos aqui incorrendo no reducionismo ingênuo daqueles que julgam serem os políticos capazes de ofertar ao povo as maravilhas utópicas de uma sociedade perfeita, mas nem por isso desconsideramos poder encontrar exemplos históricos da concreta efetuação de ideais nobres por meio da atuação pública.
Perdemos a capacidade de associar o político ao indivíduo de caráter nobre porque infelizmente a história e a experiência nos mostrou o mau uso da política de forma mais enfática, mas é importante acreditarmos na honra de determinados indivíduos que ocupam ou querem ocupar cargos públicos. É preciso que as pessoas honradas entrem nessa disputa a fim de que tal esfera não fique infindavelmente nas mãos daqueles que só querem corromper e beneficiar a si próprio. Por mais que nos agaste a possibilidade de entrar na política, precisamos ponderar que a política não é uma abstração da qual possamos nos desvencilhar, mas é a realidade concreta de um poder que nos envolve e nos sufoca se contra isso não nos pusermos vigilantes.
O mau uso do dinheiro público, do nosso dinheiro, do dinheiro do suor do nosso trabalho nos condenou ao retrocesso e nos limitou como nação. O indiferente que ontem se orgulhava de seu distanciamento em relação a tais questões, hoje sabe que sua indiferença deixa a porta do poder aberta para aqueles que o desejam sem pudor e permite que esse mesmo poder incida sobre si roubando-lhe o bem-estar e a liberdade; por outro lado, o bom uso do poder por parte daqueles que o desprezam assegura a margem de liberdade e justiça necessária para a vida sã do cidadão comum.
O momento atual é o da tomada de poder por aqueles que não querem o poder, mas que buscam limitá-lo. O tipo que vive para o poder já o possuiu bastante e esgarçou ao máximo a capacidade do nosso sistema político de corromper e ser corrompido, atirando o nosso país na lama e na disputa ideológica que fez grassar a intolerância nas esferas mais pacíficas da nossa existência social, como as escolas, as igrejas e as famílias. Não é novidade afirmar que vivemos uma divisão, uma cisão, uma guerra cultural que se reflete tanto na esfera pública quanto na esfera privada; mas pode ser uma novidade que a resposta a essa tensão surja como uma forma de se fazer política voltada mais para o encaminhamento da lei no sentido da justiça do que para a proliferação de leis que nunca são cumpridas.
O fato é que essa geração sente fortemente o peso de sua responsabilidade política, social ou humanitária. São desastres e mais desastres causados pela incompetência, irresponsabilidade ou explícita criminalidade daqueles que detêm o poder. O que hoje se busca modificar quando se fala em necessidade de renovação política é o espírito público corrompido e o seu reflexo na sociedade. A ação política vai existir, quer queiramos ou não. Que ela seja, então, reconfigurada segundo um modelo mais adequado do que aqueles cujo resultado já conhecemos e rejeitamos.
Esse novo modelo deve ser democrático, mas a democracia não é apenas o poder de voto ou o poder do povo. Para além da etimologia, democracia é o modelo perfectível da política necessária a uma sociedade aberta composta por indivíduos livres; é o espaço de experimentação política dentro do espírito das leis e que tem sempre por norte a justiça. Justiça essa que transcende o homem mas que pede a ele que a realize na terra segundo os critérios formais e abstratos de suas normas e conforme as inclinações mais genuínas de seu coração.

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