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A peste e as cidades, por Jayme Leitão

A Peste em Ashdod (1630) é um óleo sobre tela de Nicolas Poussin. A pintura (148 x 198 cm) está agora no Museu do Louvre, Paris.

Passada a tempestade, esperemos que alguns avanços permaneçam como saldo positivo da pandemia para a nossa nação: a importância do SUS, por exemplo, talvez o melhor fruto da constituição de 88, mostrando seu valor como salvaguarda da vida e dos direitos do cidadão; a importância da classe médica e dos enfermeiros, sempre tão desvalorizados face à constelação de marajás que sugam o orçamento público; mas, acima de tudo, a percepção de que nossa chaga social precisa ser sarjada de uma vez por todas.

E esse fosso social, filho dileto da escravatura jamais abolida, se cristalizou em nossas cidades na forma das favelas: quando da assinatura da Lei Áurea, nada menos que metade da população carioca era formada por escravos! As favelas ocupariam no século seguinte os terrenos de domínio público, nos baixios, alagadiços, beiras de trilho e morros, trazendo para a face das cidades brasileiras a cicatriz de uma dívida em aberto.

Impossível, por óbvio, falar de distanciamento social numa favela. Mais que isso: impossível falar de cidadania. Se uma família não tem endereço, ou fornecimento de energia, água e esgoto, o que temos é que essa família de fato não existe para o Estado. A favela nunca foi solução, mas a resposta possível de um exército de excluídos que não receberam seus acres de terra e uma mula, ou qualquer tipo de suporte ou política de inclusão. Assim, falar de distanciamento social e de asseio das mãos com sabonete é aqui tão absurdo como a sugestão de Maria Antonieta sobre os brioches.

O Estado brasileiro e seu orçamento precisam ser redirecionados dos privilégios acumulados pelos donos do poder para a erradicação faseada de todas as favelas desse país. Projetos executados no próprio local, quando possível, ou nas cercanias, implantados por etapas, após o criterioso cadastro dessas populações. Projetos cuidadosos, com área comercial, equipamentos de lazer, escolas, creches. Ao final, moradias financiadas e parcialmente subsidiadas pelo Tesouro, com direito a registro da propriedade, água, energia, saneamento – e até mesmo um CPF. Não há solução possível para nossas cidades que não passe pelo encontro marcado com essa questão.

Isso feito, a cidadania ocupará esses espaços, políticas públicas poderão ser implantadas com eficiência, o crime será mitigado, a saúde terá seu custo drasticamente diminuído em função do saneamento. E através desse processo de inclusão, de aproximação, talvez um dia deixe de ser uma piada de mau gosto falar em distanciamento social.

Jayme Leitão é arquiteto e CEO da construtora Reata

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