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A pauta de uma nota só. Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

Os tempos impõem que, em textos comuns, embora carecidos da sofisticação dos escritos científicos, seja fixado o significado atribuído a termos e expressões usados pelo autor. Em outras palavras, parece de todo prudente que  se cuide por definir os conceitos das ideias que venham a ser compartilhadas entre autor e leitor. À falta delas, as ideias, que se trate, pelo menos, de dar polimento e clareza à forma, mesmo que o sofrido conteúdo não exija compreensão por quem o lê.

As discrepâncias de entendimento e filiação ideológica e a dialética dilacerante com as quais se enrolaram as pessoas e as criaturas provocaram, nestes anos de grandes revelações, uma revolução social e semântica sem precedentes. Tão marcante foi a aceitação dos princípios democráticos, por graça de obsequiosas conversões ao uso da Razão, que as palavras e a gramática, por serem elitistas, perderam   o sentido de origem – e cada um pôs-se a usá-las à medida das suas preferências.

Já que nos desleixamos do exercício da prática de um mesmo idioma e adotamos glossário privado do que dizemos e escrevemos publicamente, tornou-se necessário lembrar ao leitor desatento o significado emprestado, nos limites de cada artigo, ensaio, peroração ou imprecação que se disponha a ler.

É o que farei, nesta abertura, recorrendo aos cuidados que a matéria requer.

Glossário de palavras controvertidas      

Quanto à terminologia empregada no texto, aos conceitos e as tentativas de elucidação que surjam, por empenho ou descuido do autor, pede-se do leitor indulgente que leve em consideração as anotações que se seguem. E aos que forem esquecidos, por humana vaidade ou pretensão, que se lhes dê o benefício da dúvida.

As palavras socialismo, comunismo e esquerdismo são empregadas aqui segundo o senso comum, isto é, não se diferenciam entre si à percepção do cidadão comum.  Apenas os intelectuais, os de origem frankfurteanas, de preferência, conseguem enfiar entre elas isolantes convenientes. O autor confessa, envergonhado, ter pulado este quadradinho, e recuou duas casas: por pura ignorância e descuido de formação não abraçou nenhuma dessas causas libertárias. 

Nazismo, fascismo e direita: espécie de comunismo e socialismo enviesado, com os seus truques e manias, parentes próximos, indispostos com as liberdades, saudosos dos rigores do Estado. Um certo parentesco encabulado com as direitas das esquerdas. Nos progroms e gulags encontraram convergências eletivas sintomáticas. No linguajar comum, pode ser considerado insulto, ofensa grave.

Populismo: empregado aqui por intenção ou abjeta provocação, deve ser lido como esse notável movimento social e político latino-americano de remissão dos pobres de espírito, como eu e alguns conhecidos, e de uma mudança radical do homem (e da mulher, que não vale a discriminação de gênero). Recebeu designações afetuosas em muitas das nações enfeitiçadas por esse anúncio de salvação: peronismo, getulismo, lulismo, bolsonarismo, castrismo, chavismo, kirschnerismo, fujimorismo, papadoquismo, stroessenerismo, mujiquismo, somozismo, duvalierismo, orteguismo. Eleitos uns, o uso prolongado do poder os fez governantes permanentes.

Centrão”: formação de homens e mulheres públicos, parlamentares e gestores partidários, que se associaram patrioticamente para assegurar “governabilidade” ao Brasil, com votos no parlamento, muitos ministérios e cargos públicos.

Opinião: refere-se, de preferência, à opinião pública, construção engenhosa edificada em editoriais e pesquisas ditas de opinião e no noticiário corrente dos fatos havidos ou imaginados na mídia formal e na mídia marginal. Afinal a notícia traz, em si, os germes da realidade, daí a necessidade de lhe ser atribuída a versão de quem conta ou noticia. Por sua vez, o leitor, constrói a sua própria realidade e dá-lhe a explicação preferida. Por ser a realidade inadequada e, por vezes, impertinente, há que dela extrair o excesso de realismo que a torna, nos mais das vezes, inverossímil. Será por outra razão que se reconhece no jornalismo a variação literária convincente da ficção?

Governo: concentração de pessoas e intenções mais ou menos vagas e solertes, nem sempre equipadas com olhares convergentes. Associação tempestiva de lealdades instintivas, de brevíssima duração, tem a seu favor, no Brasil, amplo campo de trabalho para mais de 32 ministérios, cujos detentores se encontram ou se veem raras vezes, o que não lhes dá tempo para concordarem ou discordarem entre si.

Fixadas essas referências, devo, por fim, confessar-me analista isentão, desses que suscitam o desprezo dos mais engajados. Passo-me por intelectual, como todo mundo, neste planeta povoado de terráqueos inteligentes, o que não chega a ser uma proeza.  Confesso-me apartidário, sinto-me descuidado das minhas obrigações confessionais, não torço por qualquer time de futebol, não me afeiçoei, até esta idade, à cultura funk, muito morreria de amores pelas duplas sertanejas. Ainda assim, consegui fazer amigos que me toleram (talvez me façam crer nessa afeição por sedutora indulgência). Deduzo, assim, que poderei ainda consertar os desvios confessados. Falta-me, entretanto, coragem e disposição para tanto. E o adjutório necessário.

Isto posto, vamos ao que interessa.

A expropriação da liberdade em tempos de vírus

Daqui a poucos dias, entrarei, como muitos em recolhimento espiritual, no nonagésimo dia da expropriação da liberdade, de que fomos vítimas, todos os cidadãos prestantes. De livros, as leituras são práticas usuais. Da música, cujo gênero omito, por conveniência, faço abluções diárias, em combinação com os complementos alimentares. O celular e o computador se encarregam das conexões com o mundo civilizado e, nele, vou em busca dos amigos. Esforço-me por fazer uso restrito e cuidadoso da TV, em defesa da saúde mental dos sequestrados pelo covid-19. Jornal, só se for literário ou, em variante aceitável, bula de medicamento de consumo controlado. Nas redes sociais, entrego-me à prática regular de alpinismo espiritual para escapar ao contágio das fake news e das omission News, esses indesejáveis relatos que nos servem realidade de mais e certezas de menos.

A mídia e a opinião, por ela gerada ou fora dela, perderam o aparato factual e a impressão que nos transmitiam de deter o domínio das suas funções essenciais. Explico-me para que não venha parecer que guardo desapreço dissimulado ou discriminação antidemocrática no coração. É que a pauta que seguem e com ela se enredam foi ditada à sua própria revelia.

Um personagem desajeitado caiu de paraquedas na política e cultivou tantos desafetos e tanto fez por os engordar que sobrou, apenas o Covid-19 para animar as redações. O resto perdeu interesse, esvaiu-se pelas editorias, tragado pelas plataformas on line. Não fossem os eventos contra a discriminação racial nos Estados Unidos, estaríamos sendo pautados pelos mesmos assuntos, os mesmos improvisos repetidos e os mesmos desatinos em todas as esferas dos poderes revelados “constituídos”.

Somos todos filhos da pauta

Bolsonaro ganha na corrida por várias cabeças, promove assomos de ódio e de ondas patrióticas embandeiradas e cala a esquerda conveniente. Açula os parlamentares de todas as siglas e exalta a sua vocação para servir ao governo, seja ele qual for, por puro e comprovado amor ao Brasil.  A velocidade do desenrolar dos eventos e dos desacontecimentos produzidos encantam os seduzidos pelo que desconhecem e prendem a mídia e a opinião em rédea curta, em torno de uma pauta que muda para permanecer igual ao que, de fato, é.

Ao povo que acompanha a mídia pouco resta além da pauta comum, a não ser beber e engolir a informação e a opinião formatada – ou reconstruir a recepção dessa mensagem, amparado pela ausência de consciência política, mergulhado em uma profunda indigência cidadã.

Os que fazem coro à fala de Bolsonaro estão entre os fidelíssimos eleitores anti-Lula e os que se habituaram, no curso de quase duas décadas, a acreditar no que lhes prometiam – e esperar por dias melhores. Os outros, são os circunstantes, emudecidos por tanta irrealidade e um enorme non sense político amparados pela esperança  da salvação com a carga da sétima cavalaria do general Grant. Os que ainda não viram a ficha cair e todos os que não encontram alternativa para o desvario “democrático” que se instalou no país confiam na virada do segundo tempo do jogo.

Estamos, assim, pautados pelo mesmo desafio, pelo mesmo tom e pela mesma dissimulação de uma pauta gigante.  Não importa o que achamos o “que” somos, se buscamos algum indício de inspiração democrática ou aceitamos, por cansaço ou desânimo, as promessas autoritárias ou os arremedos de reformas anunciadas, ao alcance das mãos e dos propósitos das lideranças partidárias, nessas ocasiões.

Não é só porque as relações entre os poderes tenham se esgarçado e apodrecido, finalmente. Alguma coisa mais séria poderá ter acontecido e não nos demos conta. Há quem suspeite de um breakdown institucional, um ponto de ruptura que já não sustenta um simples reboco ou muro de arrimo.

Falta povo, sem povo não existe república

O que espanta é que tenhamos chegado a este Brasil, em pleno século XXI, persuadidos de que construímos, de fato, uma nação, um povo e um país, tendo como base a democracia a que demos forma republicana, assim nos pareceu.

Surpreenderia ao observador menos indulgente conhecer que a concessão de carteiras de identidade estudantil passou a ser atribuição do Congresso Nacional. Que a suprema Corte instaure inquéritos e processos sobre crime rotulados “de segurança nacional”, proceda a investigação e os julgue; que impeça a vista de alegações contra os seus integrantes; que se pretenda prescrever condições do acesso às redes sociais. E, ainda, que uma comissão “presidencial” de ética pretenda impedir ex-ministro de exercer a sua profissão de advogado. Despropositado que um ministro da educação, enredado nos problemas dos quais não consegue dar conta, ameace ministros da Corte Suprema. Inusitado que, em reunião ministerial, torne-se de uso corrente impropérios, insultos e palavras chulas de baixo calão contra pessoas, ideias e instituições.

Finalmente, são os senadores e deputados que deixam de apreciar pautas de votações sobre questões essenciais, como represália, na condição de representantes do povo ao poder executivo. E que, em suas usinagens bacharelescas, empenhem-se na modelagem de um parlamentarismo de araque capaz de ampliar os seus poderes, com amplo apoio de mais de 32 partidos políticos e esganarem-se pelo acesso ao Fundo Partidário, às vésperas de eleições.

Entre ministros de Estado, poucos têm a oferecer e a muitos rareia competência para gerir as suas pastas, gordas e ineficientes. Vontades contraditórias, a elevada rotatividade de ministros e ministérios, projetos esparsos e mal construídos, velhas ideias renovadas, a condução desajeitada das ações de governo – este o retrato falado de mais de um ano inteiro em busca da “governabilidade” e de propósitos e programas coerentes e de longo prazo.

O princípio da federação esvaiu-se pela rebeldia de governadores que não foram capazes de superar divergências ideológicas ancestrais e pela imprudência presidencial, de seus assomos de reverberação inconsequente da sua autoridade que se esgarça e perde respeito.

A ideia vaga e inconsistente de confederação substituiu, entre governadores, com seus “consórcios”, o princípio constitucional da federação – e faz esquecer o pacto federativo no qual se fundamenta a República brasileira.

O governo, paralisado com a pandemia, tragédia reconhecida, porém muito pouco conhecida, vê expandir-se o cenário assustador de incertezas, políticas malsucedidas, carência do sistema de saúde (atribua-se esse perverso legado aos governos anteriores, cujas prioridades foram as arenas esportivas) e mudanças frequentes de orientações e de comando estratégico.

Nos países com democracia consolidada e governos estáveis e eficientes, os problemas políticos, econômicos, sociais e de saúde, em momentos de grave crise, são enfrentados com a participação solidária da sociedade, dos partidos, dos órgãos mais representativos das instituições e do povo.

Talvez precisemos inventar e organizar “um” povo, no Brasil, e dar-lhe educação, saúde, empregos e consciência política. Sem esses bens fundamentais, os países sujeitam-se à ameaça de regimes autocráticos, dominados pelas alternativas salvacionistas – a dos redentoristas, profissão bem conhecida na América Latina.

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