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A necrópsia da Operação Dispneia

O cirurgião francês Alfred Velpeau (1795-1867) conduz necropsia em quadro do pintor francês François-Nicolas-Augustin (1826-1888) (Foto: REPRODUÇÃO BRIDGEMANIMAGES).

Por Fábio Campos
fabiocampos@focus.jor.br

Merece leitura com lupa a decisão do juiz federal José Flávio Fonseca de Oliveira que, a pedido do Ministério Público Federal, ordenou a operação da Polícia Federal, batizada com o sugestivo nome de Dispneia, para busca e apreensão no âmbito do Instituto José Frota e da Secretaria de Saúde de Fortaleza, além de uma empresa comercial de São Paulo e mais duas pessoas físicas daquele estado.

A decisão do juiz se baseou no pressuposto de que a Prefeitura usou dinheiro oriundo da União para a compra de respiradores mecânicos. Exatamente esse ponto foi a justificativa para a entrada de entes federais em um caso relacionado a compras municipais. Há aí um problema de cara: não há na decisão judicial nenhuma prova de que os recursos usados na referida compra eram federais e não municipais. A Prefeitura argumenta que a fonte dos recursos foi estritamente o tesouro municipal.

Então, por óbvio, essa deveria ter sido a primeira questão a ser esclarecida antes de qualquer provocação no âmbito judicial por parte do Ministério Público e da Controladoria da União. Antes também de qualquer Ok para uma operação policial. Não seria difícil dirimir essa dúvida saneadora. Uma simples requisição dirigida ao município traria a resposta. Uma reles pergunta. Oportunidades não faltaram.

Em 20 de maio passado, cinco dias antes da operação policial, os representantes tanto do Ministério Público Federal quanto da Controladoria Geral da União e até do Tribunal de Contas da União participaram de uma reunião virtual, via Google Meet, promovida pela Prefeitura de Fortaleza cujo tema foi “Fornecer aos órgãos de controle externo atualizações sobre as ações da Prefeitura de Fortaleza no combate à COVID-19”. Entenderam?

Na reunião, além dos convidados federais, estavam a secretária de Saúde da Prefeitura, Joana Maciel e a chefe do comitê de controle interno, a advogada Luciana Lobo, além de outros servidores municipais. Na ata da reunião, pode-se ler o seguinte: “Fez-se um relato sobre as aquisições de ventiladores pulmonares mecânicos, onde ficou registrado que: o contrato com a empresa Buyerbr Serviços e Comércio Exterior LTDA, que teve por objeto a aquisição de 100 ventiladores pulmonares, teve sua rescisão elaborada, estando esta pendente apenas de assinatura”.

A ata ainda registrou que “os procedimentos administrativos para ressarcimento do montante de R$ 10.383.142,50 pagos antecipadamente já foram iniciados, com a previsão de devolução dos recursos para a semana vindoura. Foi iniciado também processo administrativo para aplicação das penalidades devidas”.

Trocando em miúdos, na reunião, a Prefeitura mostrou aos representantes da CGU e do Ministério Público que o contrato foi rescindido pela própria Prefeitura, que também já estava em busca de ressarcimento do valor pago de forma adiantada. Sendo assim, tanto os representantes do Ministério Público Federal quanto os da Controladoria da União sabiam que não havia sentido uma operação policial para investigar uma compra e um contrato já desfeitos.

É provável que o magistrado que acatou o pedido para a ação da Polícia Federal não tenha sido devidamente avisado desses detalhes que desmontam o argumento que o mesmo usou para efetivar a operação da Polícia Federal. Se assim o foi, é cabível e até aconselhável que o senhor juiz federal faça essa cobrança a quem, provavelmente, o municiou apenas parcialmente dos fatos.

Portanto, duas questões fundamentais para entender o caso: se o dinheiro para a compra que não foi concretizada é mesmo municipal e não oriundo da União, a operação federal é ilegal. Tendo o contrato sido rescindido, tendo metade do valor pago já retornado aos cofres da cidade e a outra metade em vias de devolução (se não o for, vira caso de polícia e a Prefeitura é a vítima), fatos que já se sabiam com antecedência, a operação batizada de dispneia foi uma perda de tempo e de dinheiro público.

O juiz federal deixa claro que baseou sua decisão em dados levantados pela Controladoria Geral da União, que tinha dois representantes na referida reunião com a Prefeitura. Pelo visto, a boa intenção de convidar órgãos federais para que fiquem a par das decisões municipais em época de crise (fato que justifica compras sem licitação) foi usada para uma pegadinha. Coisa feia. Afinal, se a CGU sabia que a empresa contratada era suspeita, deveria ter se manifestado e, certamente, o problema não teria ocorrido. Canais para isso não faltavam.

Aliás, ao fim da referida reunião, ficou agendada outra com os mesmos participantes para hoje, terça-feira, dia 26. Bom, quem planeja fraudar e roubar não chama os fiscais e a polícia para conhecer os planos, não é mesmo?

No mais, cabe urgentemente à Prefeitura melhorar seus critérios para compras. Claro que o momento era (e ainda é) muito crítico. Na data do contrato firmado pela Prefeitura com a empresa que não fez sua parte, a busca por respiradores mecânicos era insana em todo o mundo, tendo se tornado um mercado com atos de pirataria e até apropriação de equipamentos por países em aeroportos. Os EUA, por exemplo, ficaram com tudo que passou pelo seu território. De máscaras a equipamentos mais sofisticados, incluindo os respiradores.

Muitas vezes, uma simples pesquisa no Google expõe a falta de idoneidade de uma empresa. Visualizar a empresa no Google Maps também ajuda bastante para se defender de espertalhões que pululam no país. É muito provável que tenha havido precipitação na compra.

Quanto às instituições de fiscalização, o melhor é que ajam de forma antecipada. Quando presidente do TCU, o cearense Ubiratan Aguiar foi um ardoroso defensor da ação profilática do órgão, sempre em parceria com os entes públicos. Ele costumava sugerir a Lula que submetesse as grandes licitações, inclusive as da Petrobras, ao crivo do órgão. Lula nunca gostou da ideia. E nunca topou. Deu no que deu.

Operações policiais espalhafatosas e caras não costumam levar a um bom lugar e acabam servindo a interesses políticos de terceira categoria. Aliás, o dinheiro gasto com a dispneia aqui e em São Paulo daria para comprar uma boa quantidade de EPIs e medicamentos. Desses que salvam vidas e não jogam reputações na lama. É de dar insônia aos cidadãos.

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