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A geopolítica da arte, por Priscilla Peixoto do Amaral

Priscilla Peixoto do Amaral é empresária, advogada especializada em direito empresarial internacional. Mestre (LL.m) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e possui MBA em Strategic Business Management pela Ohio University nos EUA. Escreve no Focus.jor semanalmente. E-mail: priscillacpamaral@gmail.com

Priscilla Peixoto do Amaral
Post convidado

O mercado de arte funciona em nível global. Comprar e vender arte é um dos grandes prazeres da vida para muitos indivíduos, mas também é um negócio sofisticado que requer os melhores conselhos legais. Aconselhamos estas pessoas em demandas envolvendo a estruturação de coleções privadas, transações comerciais, litígios envolvendo fraude artística relativas à autenticidade e movimentação de arte, como empréstimos de arte para exposições.

Porém, diferentemente das demandas de âmbito privado, uma questão então adormecida recentemente voltou a ganhar evidência no meio da arte e da propriedade cultural, e ela diz respeito ao direito público e internacional destes bens.

Durante o domínio colonial na África, milhares de artefatos culturais foram saqueados. Dentre eles, estão verdadeiros tesouros que variam entre objetos naturais pré-históricos e itens então pertencentes aos reis ancestrais locais, produzidos pelas antigas culturas indígenas. As autoridades africanas agora reivindicam vivamente a restituição desses objetos retirados da África colonial, o que representa uma questão internacional muito delicada para governos e prestigiados museus – principalmente aos europeus e norte-americanos.

Desde então, há um grande debate em andamento sobre o que os países e museus devem fazer diante do crescente número de reivindicações de mais e mais países ‘fontes’ para a restituição de obras de arte e artefatos que eles dizem pertencer a eles. Uma discussão que os especialistas chamam de “geopolítica da arte”.

A França, por exemplo, fundamentando-se em sua legislação, se recusou a aceitar alguns pedidos de restituição feitos por governos africanos. Após a primeira recusa, o presidente da França, Emmanuel Macron, solicitou um relatório encomendado ao escritor e economista senegalês Felwine Sarr e ao historiador francês Bénédicte Savoy, os quais recomendaram que a lei francesa fosse alterada para permitir o retorno da arte africana. No relatório, estimou-se que 90 mil objetos de arte da África subsaariana que encontram-se em museus franceses, 70 mil estão no Quai Branly, em Paris, criado pelo ex-presidente Jacques Chirac, um entusiasta da arte africana e asiática. Os relatórios também afirmam que alguns dos artefatos foram comprados, permutados ou, por vezes, simplesmente roubados por soldados, exploradores e outros, durante o período colonial.

Outro principal alvo dos pedidos de restituição é o Reino Unido, devido ao enorme volume de obras de arte que vieram literalmente de todo o mundo. O Reino Unido é conhecido por “se esconder” por trás de vários argumentos legais para, até o momento, resistir com êxito a essas reivindicações. No entanto, o clima da opinião pública está mudando o cenário.

Recentemente, o governo da Zâmbia reavivou uma reivindicação, feita pela primeira vez em 1972, pelo retorno do famoso homem rodesiano do Museu de História Natural de Londres.  O crânio fossilizado de 250.000 anos de idade foi descoberto em uma mina no que era a Rodésia do Norte em 1921. O crânio representa uma espécie Homo que carece de algumas das características dos neandertais extintos e da humanidade moderna, um verdadeiro tesouro arqueológico.

Na ocasião do recente pedido, o Governo da Zâmbia solicitou os arquivos das negociações de 1972, no entanto, o governo do Reino Unido se recusou a divulgar os principais documentos relacionados ao caso, alegando que “prejudicaria as relações do Reino Unido com a Zâmbia”.

Uma porta-voz do Museu de História Natural disse ao The Art Newspaper que as discussões estão em andamento com o governo da Zâmbia sobre o futuro do crânio: “o museu e as autoridades britânicas estão abertos à discussão sobre todas as questões de interesse do governo da Zâmbia, diferente do que os dois estados membros tiveram no passado.”.

Um funcionário do Ministério das Relações Exteriores divulgou internamente a ideia ingênua de “trocar a caveira por algo de interesse semelhante que os zambianos possam oferecer”. Por óbvio, nenhum museu da Zâmbia tem algo remotamente parecido com a importância do crânio. O embaixador da Zâmbia escreveu que deveria ser encontrada uma solução para resolver “esse problema que inibiu a cooperação em muitos outros campos”.

Além do caso acima apontado, outro tesouro solicitado é a coleção de esculturas Os Bronzes do Benin, as quais adornavam o palácio real de Oba, Ovonramwen Nogbaisi, no Reino do Benin, que foi incorporado à Nigéria, governada pelos britânicos. O Museu Britânico, em Londres, diz que muitos dos objetos do Benin que estão em sua coleção foram dados a ele em 1898 pelo Ministério das Relações Exteriores e pelos Senhores Comissários do Almirantado, e não furtados. No entanto, as autoridades africanas afirmam que estes objetos reais foram levados quando da conhecida expedição punitiva britânica ao Benin, em 1897, em resposta a um ataque a uma expedição diplomática britânica.

Outra peça também solicitada é a rainha Bangwa, uma escultura de madeira dos Camarões, representando o poder e a saúde do povo Bangwa. É uma das peças de arte africana mais famosas do mundo e tem um enorme significado sagrado para os camaroneses. As esculturas eram feitas de esposas ou princesas reais e seriam chamadas de Bangwa Queens na terra de Bangwa, no atual distrito de Lebialem, na região sudoeste de Camarões. A rainha Bangwa foi cedida – ou saqueada – pelo agente colonial alemão Gustav Conrau por volta de 1899 antes de o território ser colonizado. Acabou no Museum für Völkerkunde em Berlim.

A Dapper Foundation em Paris, França, agora é dona da escultura Bangwa Queen. Os líderes tradicionais dos Bangwa têm se correspondido com a fundação, solicitando seu retorno para Camarões.

A controvérsia sobre a propriedade de obras de arte não é nova. Uma convenção da Unesco contra a exportação ilícita de bens culturais, adotada em 1970, defendia a devolução de propriedade cultural retirada de um país, mas não se referia aos casos históricos, como os da era colonial. Devido ao temor de os museus serem forçados a se desfazer de seus acervos, as antigas potências coloniais têm sido lentas em ratificar a convenção: a França o fez em 1997, o Reino Unido, em 2002, a Alemanha, em 2007, a Bélgica, apenas em 2009.

De um lado do debate, os museus dizem que os objeto devem continuar em exibição no museu, já que eles são vistos por milhões no contexto em que se encontra no desenvolvimento da cultura mundial. Afinal, o movimento da arte em todo o mundo desde tempos antigos trouxe prazer, educação e intercâmbio cultural, e isso é algo a ser facilitado e valorizado. Do outro lado do debate, algumas dessas reivindicações estão relacionadas a itens que os países da “fonte” dizem ser críticos para a identidade desse país.

As reivindicações de restituição para objetos culturais antigos são sempre complexas e cada uma delas deve ser examinada e tratada também em um nível político. Sem dúvidas, precedentes de restituições abrirão as comportas para reivindicações por vastas quantidades de propriedades culturais e científicas mantidas em coleções de todo o mundo.

Todavia, as oportunidades oferecem aos países colonizadores a chance de examinar e resolver essas reivindicações de forma transparente, elegante e ética, como uma oportunidade de dialogar adequadamente com os países de “origem” para curar feridas passadas da era colonial.

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