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A falta que um Andrada nos faz: um estadista para o Brasil. Depressa!

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

Paulo Elpídio de Menezes Neto
Cientista Político

Em que nos faz pensar essa enorme barafunda
em que mergulhamos, mal saídos de um populismo de confissão ambígua de esquerda e entrados nos paradoxos de impulsos retóricos mal verbalizados?  Recobramos, não sem muita luta e desesperanças, a ideia da fundação do Estado e da nação brasileiros, consolidados constitucionalmente — e a vemos, mais um vez, confrontada com um passado dominado por hesitações e arranjos, falsas visões e perigosas perspectivas apenas presumidas.
Carecemos de um projeto político consistente e de lideranças capazes que nos possam levar, como cidadãos e povo, a acreditar que somos capazes de construir um país, a salvo de interesses compartilhados por poucos e de premunições  ideológicas que nos roubam a capacidade de agir e pensar. Planos, tivemo-los e não foram poucos, burocráticos na forma e limitados em sua essência. As boas intenções, raras e encabuladas, feneceram à sombra de partidos negligentes e ineptos, espécie de sindicatos de interesses fechados, “coronelismo” rural que se urbanizou e assumiu feição moderna, embora tenha conservado a velha receita, de lastro weberiano, de solidariedade e proteção, compromisso e lealdade.
A República dos bacharéis
Tornamo-nos modernos, com a prudência de quem não arrisca passos audaciosos: criamos instituições que não respeitamos, forjamos cerimonioso aparato constitucional que desdenhamos, na prática jurídica e legislativa. Tecemos teorias avançadas, importamos o pensamento alheio e persignações salvadoras.
Acreditamos na força das leis e na supremacia da norma jurídica: e por sermos, de tal forma crédulos e confiantes no seu efeito, multiplicamos os instrumentos legais, aviamos regras e procedimentos, instâncias e jurisdições. Demos à Constituição (a que atribuímos benevolamente a condição de “cidadã”) amplo espectro de preocupações, o dom magnânimo de tudo prever e prover, inspirar e proteger. Mergulhados em caudaloso veio de normas e regras — preceitos que se regulamentam, leis que regem documentos legais e deles retiram, quando convém, sua capacidade normativa, construímos um sistema judicante que se particulariza em todo o Ocidente por sua inspiração românica, pela riqueza das possibilidades interpretativas das partes litigantes e de seus defensores. Não nos parecendo excessivo, tampouco intempestivo, demos-lhes instâncias recursais múltiplas que asseguram o amplo exercício de nossa vocação jurídico-constitucional e a engenhosidade de feitos e diligências, embargos múltiplos e tréplicas eivadas de sábios cometimentos. Elegemos os procedimentos e a hermenêutica instrumentos preferenciais às questões transeuntes de mérito. Tudo parece ter sido muito bem feito e a todos agradar e satisfazer. É, afinal, de nossa índole verbalizar intenções, na medida coerente em que travamos os riscos da sua realização. A edição de prescrição escrita em lei ou em outro instrumento normativo qualquer importa tanto – ou tão pouco — à nossa visão peninsular e coimbrã quanto o fato consumado. “Está na lei, é letra constitucional, deu no Diário Oficial” são expressões de curso forçado; têm o sabor de revelação irrecusável…
A contrario, Bonifácio pedia a redução do estoque de leis e de sua produção intensiva, e procurava os sinais de um corpo de magistratura honrado e independente.
A usinagem legal é vezo entranhado em nossa cultura jurídica de cuja serventia não abrem mão governos democráticos e ditaduras, uns e outros em busca de amparo legal e resguardo que os legitimem.  Até o estado de exceção que se cria à margem do exercício pleno da lei, serve-se, no Brasil, dos instrumentos da lei para instaurar a própria legitimidade. Paradoxo aparente? Longe disso: carecemos da unção formal da legalidade, como um monge obsequioso não há de passar sem as suas leituras das horas, no apaziguamento de suas dúvidas teologais.
Da tradição ancestral herdada perdemos alguma coisa, admitamos. Guardamos, entretanto, velhos trejeitos, modos e crenças, usos e costumes. Na política, conservamos um misto de esperteza e acacianismo associados, de forte influência ancestral. Não é que devamos nos envergonhar dessa engenhosa herança. Mas bem que poderíamos rever essas inclinações, recorrendo a alguns exemplos deixados, senão em passado recente, pelo menos em passado distante.
Nos passos de um Andrada
Ocorreu-me exumar do esquecimento, nesta quadra amarga de contraditórios despertados, a memória apagada de uma personagem respeitável nos primórdios de nossa nacionaliade. José Bonifácio de Andrada e Silva foi primeiro brasileiro ministro de Estado, na regência de Pedro, antes da proclamação da República. Trazia uma experiência rica, como naturalista, dado aos estudos de mineração, membro da Academia de Ciências de Portugal e de uma reveladora preocupação com o Brasil. Esse pendor pela ciência e pela mineralogia, em particular, não dissimulava a sua formação de base nas ciências jurídicas, a que o levou ao exercício de funções judicantes e de governo. Ao contrário, deu-lhe visão ampla e firme da política e dos problemas que se impunham aos brasileiros às vésperas da Independência do Brasil.
Muitas de suas notas e reflexões, em escritos e correspondências, conferências e debates, antes e depois de seu ministério fugaz, tinham o Brasil como tema central, sobre os aspectos arcaicos da visão corrente sobre o Brasil. A consolidação do pensamento de Bonifácio, nos escritos e na ação por ele desenvolvida, em “Projetos para o Brasil”, da autoria de Miriam Dollinikoff, ao lado da publicação de textos oficiais de governo e dos seus discursos parlamentares,  dá-nos a visão de José Bonifácio sobre questões relevantes, muitas das quais aguardam, ainda hoje, encaminhamento e solução justos. José Bonifácio foi o inspirador e artífice do Estado republicano brasileiro: o rótulo de Patriarca da Independência não lhe faz justiça, antes o imobiliza em uma imagem retórica de limitado alcance.
Bonifácio apontou com aguda perspicácia para um conjunto de circunstâncias sociais, econômicas e políticas que lhe pareciam frear o progresso no país, a exigir solução: restrição dos latifúndios, redistribuição das  terras improdutivas e incentivo da pequena propriedade; a promoção da miscigenação do povo brasileiro, de modo a integrar todas as raças e modelar uma “cultura”comum, a abolição da escravatura e adoção da mão de obra remunerada, instauração do ensino público.  Lembrou-se, ainda, de prover as Províncias de tipografias e de livros e jornais, e de estimular o aparecimento de livrarias…
“O Brasil agora é feito para a democracia, ou para o despotismo…”, afirmava e indagava sobre o que restaria, sem a realização desses propósitos: “Uma democracia sem experiência, desunida, corrompida e egoísta […]. A catástrofe é inevitável”.
Concebera em seu imaginário inesgotável de bons propósitos e políticas modernizadoras algumas regras para que o Estado fosse preservado em sua autonomia, observadas as práticas liberais e democráticas e florescesse: observância das leis (diminui-las em vez de as aumentar); igualdade de justiça; sistema adequado de arrecadação e despesa (teria previsto as “pedaladas fiscais”, em seu zelo?); que à lei não escapasse o que furta por comissão ou omissão; dar mostras de que o governo sabe castigar o duque, o desembargador, o general e o sapateiro; liberdade de imprensa só sujeita à lei “ex post facto” e não “ante factum” (a apuração de responsabilidade faz-se por meios legais, “a posteriori”), a expansão dos direitos reais da cidadania…
Transcorreram mais  de duzentos anos, e aqui estamos nós, neste dramático início de novo governo e de nova oposição, embaralhados, desajeitados, a contornar as mesmas previsões e temores, a rejeitar as medidas necessárias, no doce arrimo das combinações de governo e das ambições partidárias, omissos e indulgentes com o assédio de que é vítima o Estado ou da amplificação desmedida  do seu poder.
Representação, mandato e independência
Dois séculos antes das ideias que, hoje, nos desafiam sobre temas recorrentes, Bonifácio delas ocupava-se, nos debates da Câmara do Deputados, em sua correspondência e em notas avulsas que foram publicadas após sua morte. A necessidade de uma elite capaz e instruída parecia-lhe o pano de fundo de um cenário de modernização de velhos hábitos políticos, de antigas relações e de um sistema partidário  eficiente. Comparava ele a democracia sem “experiência, corrompida e egoísta” a uma realeza, “sem confiança e sem prudência, fogosa e despótica”.
Bonifácio contrapõe a legitimidade da maioria parlamentar à independência do eleitor e do seu representante mandatário, e dá corpo, intencionalmente, a uma questão que, entre outras, constitui a chave do funcionamento equilibrado de todo sistema politico. Qualquer reforma política, dessas sobre as quais se fala no início de cada governo que se instala, ou é sustentada pela oposição que não a promoveu quando era maioria e governo, ou tem como referência esses pontos cardeais. Reforma política, na nossa cultura política, é aspiração sustentada por farta verbalização, pela retórica fértil dos homens políticos — e amplamente defendida, desde que não se realize.
Bonifácio afirmava, em pronunciamento na Câmara dos Deputados em 28 de junho de 1861: “Se o eleitor, se o deputado não tem nem pode ter a independência necessária, as próprias maiorias também desaparecem, deixam de existir, deixam de ser um sinal porque são um critério, isto é, os governos não têm maioria porque têm razão, têm razão porque têm maioria. Os partidos desaparecem também, porque não há partido sem espírito politico, e não é possível espírito politico formado e dirigido por governo algum deste mundo”.
Por fim, em meio a anotações sob o título revelador “Os brasileiros querem ter Liberdade”, Bonifácio revela-se observador atento da alma brasileira (seríamos, já então,  “brasileiros”?): “Os brasileiros querem ter Liberdade; mas Liberdade individual, e não as que tinham as repúblicas antigas, que era só a pública ou política. Não estão em estado de fazer sacrifícios contínuos pessoais…”. Não avaliava Bonifácio nada diferente, por meios distintos dos que agora se empregam.
Não estamos muito distantes de nossos ancestrais, contemporâneos da criação do Estado brasileiro: criticamos os governos, mas somos indulgentes com as suas ações – e mais ainda com seus atores. Não raro, devemos-lhes o atendimento de interesses que, a nós, nos parecem legítimos. Acusamos personagens políticos, como se não fôssemos cúmplices de sua eleição e do que fazem do exercício da representação que lhes conferimos, na “deseleição” do essencial dos requerimentos democráticos a que a sociedade se submete e os seus instrumentos de Estado e de governo.
Medidas improvisadas, reformas fiscais, cauterização pontual de feridas expostas, nada poderá impedir (talvez consigamos mitigar , aliviar os incômodos – e conceder-nos a sensação de que algo se faz, eis que se há de pôr esperança e fé nos desígnios incontroláveis que nos governam…) o desastre anunciado das rupturas sociais e políticas inevitáveis.  E de crises permanentes, causa de instabilidades e da indução de demandas renovadas.
A revitalização do Estado, a revisão de suas funções centrais, a minimização de seus controles em troca da eficiência de sua autoridade, a modernização dos instrumentos de que se serve, a reforma do sistema politico e das relações econômicas das quais é parte, são, ao lado da educação, mecanismos de uma revolução democrática incontrolável. Que não se fazem nas ruas, com “black blocs” a soldo e resistências veladas, mas será resultado da participação ampla de todas as forças da nação, e há de seguir os caminhos institucionais republicanos, em um cenário bem iluminado com ampla participação popular e de suas representações políticas legítimas.
 
Referências:
José Bonifácio de Andrada – Projetos para o Brasil, Companhia das Letras, São Paulo, 2005;
_____________________  — “Discursos Parlamentares”, Imprensa Oficial, São Paulo, 2007;
Mirian Dolhnikoff – “José Bonifácio, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.

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