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A escrita que se escreve. Angela Barros Leal

Palavras, apenas palavras. Foto: Divulgação

Não sou eu quem escreve isso, acho por bem revelar. São as palavras que se escrevem, que pulam dos dedos e das mãos para a tela, querendo ser ditas, ser vistas, pois é assim que são: apressadas, ansiosas, muitas vezes traiçoeiras e ambiciosas, indiferentes à vontade de quem precisa lidar com elas.

A palavra “precisa”, por exemplo, que acabei de empregar, escreveu-se agora procedente não sei de onde, imiscuindo-se no espaço que pertenceria a “quem gosta de lidar com elas”. Se bem entendo, parece querer me dizer que não se trata de questão de gosto ou de preferência. Não se refere a uma escolha pessoal, aleatória, mas sim a uma imposição, um dever imposto nem sei por quê, não sei por quem, algo a qual só me cabe dizer: “assim seja, amém”.

Ontem mesmo comentei com uma amiga: cesteiro que faz um cesto faz um cento, pensando no conhecimento metódico dos fios, das palhas, da espessura das malhas, no conhecimento da fôrma e da forma que o artesão consegue dar ao objeto. É ele dono dos atos, dos elementos que utiliza, é dele a segurança nos movimentos que pratica, ele sabe o que fazer com o que mantém por perto.

Não é assim com quem escreve. Nada pode ser igual ao que existia antes, e a composição das palavras, a formação das frases, o conteúdo que irá surgir, nada disso se submete a moldes, costumes, hábitos ou tradição.

E lá vem a palavra se escrevendo, a se dizer insubmissa, rebelde, indomável. Ela é assim mesmo, desse jeito, de se dizer o que bem quer, como quer ser encontrada, entendida e utilizada, ao mesmo tempo forte e frágil. Sente-se livre para esconder-se, desaparecer, sumir de vez, tão brincalhona, na angústia de quem busca por ela nas fibras do papel em branco, ou no vazio dos pixels de uma tela iluminada.

A única palavra que se escreve agora é: vazio.

Porém me faço de forte e reajo. Sei que ela, quando deseja, nos deixa uma ponta de rédea, ainda que curta, suficiente para dar início a nosso falso poder. Se o que ela se diz e eu escuto é “vazio”, tento organizar sua intromissão onde não foi chamada e escrever sobre um tempo antes do mundo, sobre um passado de silenciosa vigília, sobre uma escuridão absoluta dentro da qual não existiria nada.

Alvíssaras, a palavra se diz, e diviso minúsculos pontos luminosos rompendo a escuridão, e a eles dou o nome de “searas”. Com elas elaboro constelações e desenho, no campo da tela, um universo novinho em folha, reescrevendo o Livro do Gênesis, dando vida a um mar onde estava o céu, um céu no lugar do mar, criando nuvens de ondas da cor de laranja, laranjas da cor da rosa, e rosas em todos os tons e cores.

Salamandra, é palavra que me vem do nada, como o rastejar viscoso de um réptil fragmentado e multicolorido, assinado por Gaudí, a insinuar-se em brechas, frestas e gretas abertas na minha mente, e entre os mundos dos humanos e das desumanas espécies, ante as quais somos a voz do extermínio.

Aqui, eu teria escrito “infortúnio”. Extermínio, porém, avançou de garras à mostra, emaranhando-se no enunciado inicial, liderando sua matilha de poderosos equivalentes: aniquilamento, extinção, banimento, supressão.

Tento retomar no texto o poder que me resta, o que apenas serve de pretexto para o zumbido intenso de novos termos, capazes de conspirar contra a lógica, de sopro rijo o bastante para naufragar as naves onde navegaram os escrivães da Corte, para suavizar o silício do verdugo no patíbulo, antes do golpe maior que levará o condenado à Morte.

Mas, se nem pensei Nela, em seu vulto assustador e mudo, de onde me veio escrevê-la.

Pelo que vejo, estou submissa a poderio similar ao de um califa otomano, que no entorno de minha língua entrança fios bizantinos e me impõe um destino que desconheço, e que sequer estou procurando.

São as palavras, sozinhas, que se aconchegam, se aproximam e se escrevem em avalanche, desabando estrondosas em ignoto leito oceânico, chamando à ordem uma legião de centuriões engalanados, convocando a guarda do Vaticano, em vestes de veludo roxo e dourado, impelindo reis astecas desalmados a extraírem pela boca os corações dos inimigos, liderando a formação de filas indianas de berberes e beduínos, de cáfilas de camelos ruminando alucinações enquanto dervixes giram e dançam embaixo do sol, sobre o solo pontiagudo que lhes servirá de jazigo.

Não me pergunte o que quero dizer com esse enfileirado de palavras em desatino. São elas que vieram e se escreveram, e se a incumbência de tentar conduzi-las é meu destino – paciência: continuarei atenta enquanto o espírito delas me quiser ter como submissa escrava.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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