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A democracia representativa e legitimidade partidária, por Paulo Elpídio Menezes Neto.

Paulo Elpídio de Menezes Neto, é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC; ex-secretário de educação do Ceará.

Por Paulo Elpídio de Menezes Neto 

“Pátriaminha…A minha pátria não é florão, nem ostenta lábaro não; a minha pátria é desolação de caminhos, a minha pátria é terra sedenta, é praia branca: a minha pátria é o grande rio secular que bebe nuvem, come terra e urina no mar”, “Pátria Minha”, Vinicius de Moraes

Mergulhamos nestas “terras brasilis” por entre águas turvas de inquietantes paradoxos. E não é de agora, faz tempo, lutamos contra a correnteza revolta de ideias improvisadas, de crenças envelhecidas e novidades improváveis que, a rigor, sequer são novidades. E a tal ponto haveríamos de chegar, em muitas décadas, séculos bem contados, que já não nos basta o desabafo de quem perdeu de todo a capacidade de enxergar o futuro.
Deixamo-nos dominar por credulidade ingênua de que, afinal, nem tudo está perdido.
As crises são, deveras, criativas para quem não perdeu nada.
Há os que repetem com persignação a mantra de que “toda crise é criativa”, “unidos venceremos”, “é preciso pensar grande”, “é preciso rejeitar a teoria destruidora do quanto pior, melhor”, “somos maiores do que o mosquito”… O que mais assusta nesses transes patrióticos é que muitos acreditam nessas jaculatórias salvadoras. No passado, aceitamos que éramos uma “ilha de esperança e tranquilidade no mundo”, vivemos, orgulhosos, o “milagre brasileiro” e o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, convertidos às palavras da redenção. Fernando Henrique Cardoso cunhou expressão que o acompanhou pelos dois governos e lhe traz, ainda hoje, sombrios aborrecimentos: às críticas de suas obras e artes chamou de “nhém-nhém-nhém”. Medici convidara os impatriotas a ir embora. Por agora, essas criaturas recalcitrantes ao convencimento da Revelação são batizadas de “derrotistas”, gente de vista curta, “neoliberais” golpistas.
Enfim, somos, nós brasileiros, cidadãos de pouca-fé, não damos tréguas aos governos, desejamos o desastre, adoecemos por simples birra para ver o SUS pegar fogo e levar o sistema de saúde à inadimplência.
Auto-purificação política (catarse): modo de usar 
Traço singular e simpático do caráter brasileiro está na sua capacidade de rir de suas próprias dificuldades, zombar das pequenas-grandes tragédias de sua vida como povo e nação, de recobrir as maldades, a desonestidade e a inépcia dos agentes do poder público com o manto irônico da anedota. Essa engenharia da catarse de fuga dá-nos a capacidade de transformar certezas em dúvidas, crimes em virtudes, faltas em tropeços, amarguras em risos. E reduzir a hipocrisia do homem público (sem as mentiras, as verdades não existiriam…) a metáforas do bem fazer (o “rouba mas faz”), por obsequiosa renúncia da consciência.
O brasileiro cordial 
Teríamos sido diferentes no passado? A dualidade que deu origem a muitos embates, ao longo de nossa História, ganhou, ao passar do tempo, formas novas, moldando-se a ideologias da moda, e às novas circunstâncias sociais e econômicas.
A figura romântica do “brasileiro cordial” (diferente da imagem que dela fazia Sérgio Buarque de Holanda) não encontra paradigma verdadeiro em nossa vida nacional, monárquica e republicana.
Ainda assim, respeitados esses atributos heroicos, nunca fomos dados a grandes embates, além das longas porfias nas antessalas dos gabinetes do Estado. Nem mesmo nas ruas, nos espaços da controvérsia ou dos embates de armas fomos além da prudência diante das forças da ordem e da segurança pública. Em momentos raros, trágicos, demo-nos a esses impulsos, já apagados pelo tempo e pelas lembranças desfeitas na memória passageira dos brasileiros.
Somos, segundo imagem duvidosa, um povo pacífico. Aprendemos a conciliar o inconciliável, com elevada elegância e uma certa inclinação oportunista. Em Mafra, onde o Regente Dom João conciliava posições adversas em relação às conquistas napoleônicas que ameaçavam a Península, havia políticos “ingleses” e “franceses” militando patrioticamente pelas “suas” razões de Estado. O jovem Regente punha-se nessa refrega diplomática como moderador distraído, afinal não seria ele que assumiria a responsabilidade pelo que viesse decidir… Celebramos essa abonadora experiência por todas as repúblicas, além das duas monarquias braganças.
A palavra é a arma dos cidadãos de bem… 
Tornamo-nos sede da Monarquia graças ao exílio auto-imposto pela Coroa portuguesa, sem escaramuças, com algumas diatribes verbais ao estilo lusitano e reclamações de cortesãos que abominavam os mosquitos e o mau cheiro das ruas do Rio de Janeiro.
Fizemo-nos Império, independentes, em momento de exasperação do Príncipe, lá para os lados do Ipiranga, diante do espanto de tropa reduzida, na presença daquele ato insólito. Refregas aqui e ali. Batalhas verbais eloquentes. Algumas boas ideias “bonifacianas” logo desprezadas pelas intrigas cortesãs, e a firmeza de dona Leopoldina. Contornamos os antagonismos, ignoramo-los: escravismo, monarquismo/republicanismo, reinós/brasileiros.
Tudo para que, de repente, em noite aberta, ao fulgor da espada de um velho marechal, prenúncio de futura estátua equestre, nasceu a República: muxoxos jansenistas e monárquicos, adesões patrióticas, as persignações maçônicas, a ira dos fiéis servidores das Cortes, a incredulidade dos autóctones e a desconfiança divertida das nações amigas. A chegada dos militares, o advento dos políticos convertidos às pressas da monarquia para as promessas republicanas. E tome-se lá 127 anos de velhas e novas repúblicas, “Estado Novo”, “Revolução pela liberdade, com a família”, e “Brasil, país de todos” e a sempre lembrada “Pátria Educadora”. Constituições, outorgadas, delegadas, com o crivo de autoridade dos artesãos da lei e do Estado de direito. Muitas mudanças, salvo as essenciais transitaram pelos balcões da coortes aliadas às justas da ordem. Somos, segundo imagem duvidosa muito difundida, um povo pacífico. Nossas oposições e as contraposições internas dos atores políticos ou seja lá o que politicamente representassem, buscaram, sempre, nas horas mais frementes dos embates, a conciliação, a conveniência tranquilizadora dos acertos, das alianças feitas, historicamente, “por cima”, bem ao gosto das elites e de suas ambições patrióticas. Ou pela convergência das afinidades corporativas e sindicais.
Sobre conflito de legitimidades: o “povo-eleitor” e o “povo-opinião 
O Estado moderno está condicionado por novos controles sociais que não derivam unicamente dos controles legais e normativos, mas que, nem por isso, carecem de força para produzir efeitos e consequências nos amplos quadros dos espaços republicanos.
A ideia de “poder de supervisão”, “pouvoir de surveillance”, para Pierre Ronsavallon (2006, pág. 35) surge com a Revolução francesa e teve por objetivo “contrabalançar a tendência dos representantes a se autonomizarem”. É uma espécie de supervisão dos representantes da nação pela nação. Essa figura não se assemelha à forma dissimulada de democracia “direta”, a que se alude atualmente, numa tentativa de fratura do sistema republicano de representação, a exemplo dos conselhos dos sovietes, instaurados em 1917.
Nesse cenário, a revolução comunista ainda não lograra instituir e controlar o aparelho de governo do Estado que veio, et pour cause, chamar-se de soviético. O poder de supervisão a que alude Ronsavallon correspondia, de certa forma, à instituição de uma força de “desconfiança” envolvendo a disfuncionalidade do exercício do poder. Robespierre acreditava, com seu viés jacobino, que a “desconfiança é a guardiã dos direitos do povo; ela está para o sentimento profunda de liberdade assim como o ciúme está para o amor” (2006, 36). Essa vigilância realizar-se-ia pelos cuidados de velar, denunciar e avaliar, três fases do poder de supervisão.
Dessa forma o sistema eleitoral-representativo confrontaria diversas formas de “supervisão”. Embora correndo o risco de redução exagerada, seria possível contrapor-se os controles da opinião ao poder do Estado e das formas representativas do seu exercício, como forma moderadora do seu poder. Os controles do “povo-eleitor”, representado pelos que foram designados pelas urnas (2006, 107) e aqueles do “povo-opinião” expresso pelos órgãos de opinião, a mídia em suas múltiplas variações. Tais controles pressupõem, entretanto, quer em relação ao “povo-eleitor, quer ao “povo-opinião,”razoável nível de consciência política. Este é, entretanto, patrimônio que se forma e constrói a partir de uma história vivida em comum e de um lastro educacional que transforma o indivíduo em cidadão e dá-lhe os atributos de um ser politico. Não é pouco como desígnio, nem menos como desafio.
Nesse quadro, surge, no corpo das constituições modernas, a possibilidade da “deseleição”, uma forma manifesta de “democracia de sanção”, mediante procedimentos que frustram ou impedem reeleições em face de fatores, condições e circunstâncias legalmente inscritos. Essa forma de “revisão” da vontade anteriormente expressa reafirma e fortalece o princípio do “impeachment” como “deseleição”, ex post facto. A quebra de mandato pela revisão de outorga passada suscita, por sua vez, riscos perigosos, na medida de como se constitui o sistema político considerado, a organização partidária, o perfil das coalizões e, last but not least, o Sistema eleitoral.
Tornou-se vezo entre nós, brasileiros, o recurso ao parlamentarismo, como medida alternativa para atenuar os “desvios” funcionais do presidencialismo. Da mesma forma, seduz aos menos avisados o recurso ao plebiscito ou referendo, ainda que não se confundam na sua compleição política, como alternativa às formas estabelecidas de representação popular. O “impeachment” não pode, por sua vez, substituir a função do “cidadão-leitor”pela variante transeunte do “cidadão-opinião”. A democracia exige bem mais do que esses trejeitos paraconstitucionais: não seria o neoconstitucionalismo de corte recente que justificaria mudanças de tamanha profundidade no alcance dos remédios constitucionais.
A descoberta do inimigo: o desafio da democracia representativa 
Georges Smiley (“O Espião que veio do frio”), personagem de John Le Carré, assiste da janela da sua sala, quando o nazismo dava seus primeiros passos triunfantes, estudantes da juventude hitlerista atirando livros da biblioteca em uma fogueira no pátio da universidade. Nada pôde fazer, a não ser ficar fumando, com aquela alegria selvagem de quem descobriu, por fim, o inimigo.
Ficaremos nós à janela assistindo temerosos e convenientes ao nascimento de novos inimigos desta “pátria tão pobrinha”, “…uma ilha Brasil, talvez”, nas palavras ternas de Vinicius? Quedamos, assim, contraídos, na passiva e frustrante posição de um coitus politicus interruptus?
Como lidar com o espectro do autoritarismo que nos ronda e distinguir a cavilosa “interpretação” da vontade popular da força dos “coletivos”criados por simples e caprichosa cooptação?
Notas: 
João Paulo Soares Alsina Júnior – “Rio-Branco, grande estratégia e o poder naval”, FGV, Rio, 2015. 
Roger-Gérard Schwartzenberg – “La Politique mensonge”, Éditions Jacob, Paris, 1998 
Pierre Ronsavallon – “La contre-démocatie: la politique à l’âge de la défiance”, Éditions du seuil, Paris, 2006.

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